Importância das narrativas de contos de fadas na infância
Bruno Bettelheim é uma figura polêmica, cuja trajetória biográfica envolve tanto contribuições significativas quanto equívocos. Um dos conceitos mais criticados associados a ele é a ideia da “mãe geladeira” como fator etiológico do autismo.
Essa noção, amplamente refutada pelos estudos atuais, reflete as especulações da época. Em 1990, enfrentando perda de credibilidade no meio acadêmico, Bettelheim tirou a própria vida.
No entanto, sua obra Psicanálise dos Contos de Fadas continua relevante. Considerado um clássico, o livro oferece importantes insights sobre como as crianças leem e compreendem o mundo por meio dessas narrativas.
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Bettelheim argumenta que a compreensão do significado da própria vida não é adquirida repentinamente, nem mesmo na maturidade, mas se desenvolve gradualmente, influenciada pela herança cultural, na qual a literatura ocupa papel preponderante.
As crianças, segundo o autor, encontram nos contos de fadas populares uma satisfação única. Essas histórias ajudam a dar sentido ao turbilhão de sentimentos que elas vivenciam.
Bettelheim aponta que a psicanálise busca capacitar o indivíduo a aceitar a natureza problemática da vida sem sucumbir ao escapismo.
De forma semelhante, os contos de fadas ensinam que as dificuldades são inevitáveis, mas quem enfrenta corajosamente os desafios, ainda que pareçam injustos, alcança a vitória.
Essas narrativas simplificam dilemas existenciais, apresentando-os de maneira breve e acessível. Detalhes desnecessários são eliminados, e as personagens são planas, ou seja, possuem traços bem definidos e pouco complexos, o que facilita a compreensão por parte da criança. A polarização entre bem e mal ajuda a clarificar conceitos abstratos.
Diferentemente das fábulas, que costumam ser moralistas e ameaçadoras, os contos de fadas não impõem lições explícitas. O final feliz transmite à criança uma mensagem de esperança: apesar das dificuldades, é possível superar os obstáculos e alcançar a felicidade.
Outro aspecto significativo é a identificação facilitada. As personagens muitas vezes não possuem nomes próprios, sendo referidas como “pai”, “mãe”, “madrasta” ou “princesa”.
Essa generalização permite que a criança projete seus próprios sentimentos e conflitos nessas figuras. Por exemplo, a madrasta má pode simbolizar os aspectos negativos que a criança percebe na própria mãe, aliviando a culpa de sentir emoções contraditórias.
Bettelheim também destaca que os contos de fadas correspondem à visão de mundo da criança, oferecendo conforto emocional que uma análise lógica dificilmente alcançaria.
Ao abordar questões como rivalidades entre irmãos, medo de amadurecer ou fantasias destrutivas, essas histórias dialogam com o inconsciente infantil, tornando mais compreensíveis os conflitos internos.
Expressões como “Era uma vez” ou “Há mil anos” remetem a tempos e lugares distantes, afastados do aqui e agora. Essa ambientação simbólica convida a uma jornada pelo universo interior da criança, permitindo que ela explore os domínios do inconsciente de forma segura e encantadora.
Em suma, os contos de fadas são mais do que simples entretenimento: são ferramentas poderosas para ajudar a criança a compreender o mundo, lidar com seus conflitos e encontrar sentido em sua própria existência.
Alguns contos de fadas
Como vimos, os contos de fadas trazem mensagens simbólicas que dialogam profundamente com os medos, desejos e conflitos infantis.
Cada história apresenta uma narrativa rica em significados, como mostra Bettelheim em Psicanálise dos Contos de Fadas. Abaixo, destacam-se algumas análises sobre histórias icônicas:
João e Maria
Esse conto aborda o medo do abandono e da fome, além da angústia que surge quando a criança percebe que a mãe não pode satisfazer todos os seus desejos.
A narrativa ressalta também a importância da cooperação entre irmãos, representando a força do vínculo familiar como estratégia de superação dos desafios.
João e o Pé de Feijão
A história enfatiza a importância de correr riscos e tomar iniciativas. João, ridicularizado por sua mãe após trocar uma vaca por sementes mágicas, mostra que a coragem e a confiança podem transformar situações adversas. A trajetória de João simboliza a superação e o crescimento pessoal.
Branca de Neve
Existem diversas versões dessa história, cada uma com nuances interpretativas. Em uma versão, Branca de Neve é abandonada deliberadamente por uma condessa enciumada.
Na versão mais conhecida, a rainha é sua madrasta, que se sente ameaçada pelo crescimento da jovem e compete com ela pela beleza. Essa narrativa reflete um genitor narcisista em conflito com o amadurecimento da prole e o próprio envelhecimento.
A história também carrega simbologias poderosas. A pele branca de Branca de Neve simboliza a inocência, enquanto o vermelho dos lábios pode remeter ao despertar da sexualidade ou à menstruação. O conto é uma metáfora para a transformação da puberdade, retratando o amadurecimento e seus desafios.
Chapeuzinho Vermelho
As versões de Chapeuzinho Vermelho de Perrault e dos irmãos Grimm apresentam diferenças significativas. Na narrativa de Perrault, o lobo não se disfarça de avó e convida Chapeuzinho a deitar-se ao seu lado.
Essa versão tem uma moral explícita: meninas devem evitar ouvir estranhos. A abordagem direta da sexualização e da moralidade transforma o conto de fadas em um conto admonitório.
Já na versão dos irmãos Grimm, a sedução do lobo é menos evidente e direta. Para Bettelheim, o valor do conto de fadas se perde quando seu significado é detalhado ou simplificado.
A narrativa dos Grimm simboliza processos interiores da criança, especialmente na puberdade. A fartura no lar de Chapeuzinho indica que ela já superou a angústia oral, presente em histórias como João e Maria. O caçador, que salva os bons e pune os maus, é uma figura atraente tanto para meninos quanto para meninas.
Vale notar que o lobo não é morto pelo corte em sua barriga, o que poderia evocar medos associados ao parto ou à morte materna. Ele é derrotado por Chapeuzinho, que toma a iniciativa de encher sua barriga com pedras, mostrando que a coragem e a ação são decisivas.
Sugestões de livros
No livro Psicanálise dos Contos de Fadas, Bruno Bettelheim explora uma ampla variedade de histórias, destacando seus significados e valores simbólicos. É uma leitura fascinante para quem aprecia literatura e psicanálise.
Entre as edições que possuo, destaco João e Maria, publicada pela Companhia das Letras. A obra é fiel à história clássica e apresenta ilustrações feitas com materiais de diferentes texturas, tornando a experiência de leitura ainda mais rica e envolvente para a criança.
Outro destaque é esta edição interativa de Chapeuzinho Vermelho, da Editora Melhoramentos, que preserva a versão dos irmãos Grimm. O livro vem acompanhado de quatro personagens de madeira e um cenário pop-up, permitindo que os pequenos leitores recontem e encenem esse famoso conto de fadas de maneira lúdica.