Os jovens e a leitura: desconstruindo clichês

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Marli Siqueira Leite

“Adolescente não gosta de ler”. Não é verdade, há muito a considerar antes de se emitir o chavão clássico. A aproximação do jovem em relação a qualquer obra, em especial a literária, dá-se de variadas formas, por múltiplos estímulos e esses caminhos são mais tortuosos do que parecem, principalmente se considerarmos o momento atual, marcado pelos avanços tecnológicos e por tantas outras vias para o exercício do ler.

Muitas vezes, essa aproximação acontece por acaso. Um livro cai nas mãos do jovem (hoje, mais afoito por um celular ou iPad), porque ele simplesmente gostou do título, porque um amigo leu e curtiu ou porque viu na biblioteca da escola e resolveu abrir. Ou, ainda, porque foi “convidado” a fazê-lo, ou, mais exatamente, por imposição mesmo.

Como é comum a essa etapa da vida, em muitas situações, mesmo apreciando alguma obra, a tendência primeira do adolescente é torcer o nariz, encher a narrativa de defeitos, até não prosseguir na leitura. Os motivos também são vários: por falta de fôlego, pelos desafios impostos pelo texto, porque um adulto disse que é bom e o jovem precisa se diferenciar dos pais ou do professor. É compreensível.

Acontece que o gosto pelo ler, na maioria dos casos, é plantado muito antes, em um processo mais gradativo e espontâneo: com as histórias contadas pelos avós, com as leituras de um mesmo livro lido inúmeras vezes pelos pais antes de dormir, com o estímulo da escola, como já escrevi aqui em outro artigo.

Mas, mesmo esse prazer não tendo sido estimulado e descoberto na infância, é preciso acreditar, para muito além dos clichês sobre a leitura nessa faixa etária, que os adolescentes podem surpreender a qualquer momento, desde que sejam atingidos pela flecha do cupido de um bom autor, de um bom texto. É necessário, portanto, cautela antes das assertivas: olhos atentos para os estudiosos da área e outros tantos para a realidade ao redor.

Uma obra para se compreender a relação entre o jovem e a leitura

O livro Os jovens e a leitura – uma nova perspectiva (Editora 34, 2008, Selo “Altamente Recomendável” da FNLIJ), da antropóloga francesa Michèle Petit, despertou-me para o cuidado nas conclusões apressadas sobre o tema entre os adolescentes.

Pesquisadora do Laboratório de Dinâmicas Sociais e Recomposição dos Espaços na França, a autora resgata as múltiplas dimensões da experiência da leitura em quatro conferências ministradas por ela. Ao se pensar no nosso país, alguns poderão questionar a pertinência de suas análises para o contexto brasileiro. De fato, são realidades muito distintas em termos educacionais, em relação às desigualdades sociais e ao acesso ao livro.

No entanto, o estudo de Petit se volta justamente para as periferias das grandes cidades francesas, para as zonas rurais e para as comunidades de  imigrantes em seu país, onde os problemas são também complexos e frequentes quanto os nossos.

Vale destacar nesse sentido que, não importa o espaço, a leitura envolverá, sempre e paradoxalmente, solidão e abertura para o outro, introspecção e troca, identidade de cada sujeito e cultura. Para se aprofundar na realidade dos leitores – em especial, os jovens – é preciso ter essa ideia em mente e ir a campo, como fez a pesquisadora francesa.

Seu estudo se pauta em inúmeras entrevistas com adolescentes e responde a algumas perguntas norteadoras do tema.

Primeiro: Por que ler é importante (para os jovens)?

  1. Porque permite o acesso ao saber, a conhecimentos múltiplos, a um “capital cultural legítimo” (Pierre Bourdieu) e, portanto, à liberdade, à dignidade, à autonomia, à oportunidade de se vencerem as desvantagens, à cidadania. Ler e escrever são importantes para não se ficar à margem. A leitura no passado era um exercício coercitivo, de controle, de submissão; estimulava-se a leitura para “enquadrar, amoldar, dominar os jovens” (Petit). Hoje, estamos cientes de que a leitura (embora o texto escrito seja manipulador por natureza) prima pelo libertar.
  2. Porque permite que o sujeito se aproprie da língua: uma língua/linguagem diferentes da que ele usa em família, na rua, e que pode lhe assegurar prestígio social.
  3. Porque ler é a oportunidade de se construir a si próprio. “Quanto mais formos capazes  de nomear o que vivemos, mais aptos estaremos para viver e transformar a nossa vida e a dos outros” (Petit). Enfim, nomear é uma forma de compreender, de fazer existir o desconhecido.
  4. Porque desenvolve a capacidade de simbolizar, imaginar, sonhar e pensar autonomamente. Permite a (re)construção psíquica: o sujeito mais saudável psiquicamente é capaz de contribuir para a (re)construção de seu entorno. “A leitura pode ser uma via privilegiada para inventar caminhos novos, para construir uma identidade aberta, em evolução, não excludente” (Petit). Cabe destacar que a “febre de identidade” juvenil pode ser uma reação à exclusão e pode ter desdobramentos violentos. “Existe uma única coisa capaz de se opor a essa sociedade [violenta, preconceituosa, impositiva]: o imaginário, o espaço sensível. O espaço sobre o qual a sociedade não pode exercer nenhum controle” (Petit).
  5. Porque permite viver um outro lugar, um outro tempo. O livro pode oferecer a chance do pertencimento, de o sujeito se encontrar em algum lugar no mundo (no espaço) e um lugar na história (no tempo). A literatura, sobretudo, pode permitir este “localizar-se” e isso, para os jovens, significa se encontrar, algo tão desafiador e precioso sobretudo para eles.
    A imaginação não contribui apenas para a criatividade, costuma contribuir também para o interesse no mundo real. Toda a leitura – de textos científicos ou ficcionais – cumprem seu papel na formação de um sujeito mais bem resolvido consigo mesmo e aberto para o conhecimento de outros universos além do seu; possibilita-o ser mais sensível e crítico.
    Concluindo, permite-lhe conjugar as relações de inclusão: “… Por meio da leitura e, em particular, da biblioteca, alguns fazem descobertas graças às quais o fato de serem originários de duas culturas é sentido mais como uma riqueza e menos como um sofrimento. Aceitam e articulam os diversos momentos de sua história, assimilam uma parte de sua cultura de origem” (Petit) e assimilam a do outro de forma mais harmônica. Há soma, não perda.

Os próximos capítulos…

No próximo artigo, seguiremos refletindo sobre os estudos de Michèle Petit para entendermos um pouco mais sobre os (des)caminhos que unem e separam os jovens da leitura.

Trataremos de outros três aspectos importantes abordados pela obra: 2° – os fatores que contribuem para a formação de leitores e os que dificultam o processo; 3° – os modos como se dá o processo da leitura e 4° – os modos como nos tornamos leitores.

Aguardo você, caro leitor!

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Marli Siqueira Leite

Professora há mais de 30 anos, formada em Letras pela PUC-SP com especialização em Educação pelo Espaço Pedagógico-SP. Após Mestrado em Letras na Ufes, foi professora na própria universidade, no Centro de Educação. Sua dissertação sobre o poeta Ronaldo Azeredo rendeu um livro e a curadoria de uma exposição na Casa das Rosas-SP e no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES). Fez Doutorado em Educação na FEUSP e hoje atua como professora na Escola Americana de Vitória. [email protected]