O menino mais bonito do mundo: uma das obras mais poéticas de Ziraldo

Foto de Marli Siqueira Leite
Marli Siqueira Leite

Literatura é literatura. Dispensa adjetivos. Não é boa nem má. Não é infantil, juvenil ou adulta. Simplesmente é ou não é literatura. Envolvida com o universo das crianças e dos adolescentes durante muitos anos, sempre me incomodou a classificação literatura “infantil” ou “infantojuvenil”.

É evidente que, quando se escreve pensando nessas faixas etárias, deve-se buscar uma linguagem mais apropriada a esse universo. A produção também demanda cuidados com o tema e com o volume do texto, dado o fôlego de leitura dos mais novos, ainda breve.

>> Quer receber nossos artigos de forma 100% gratuita? Participe da nossa comunidade no WhatsApp.

No entanto, como chamar, por exemplo, “O menino mais bonito do mundo”, de Ziraldo, de uma obra voltada apenas para crianças, se o livro é pura poesia sobre a arte de ver e encanta os leitores há tempos: dos netos aos avós?

Na capa, um olho gigante, tendo o sol como pupila, anuncia o mundo prestes a acontecer. A obra é dividida em três partes.

Da escuridão caótica, às primeiras imagens da manhã: é o nascer do primeiro dia. A paisagem, da então menina artista Apoena Medina, com 10 anos na época, faz-se de cores intensas, bem delineadas por contornos pretos.

Estão aí os traços da criança desenhista: vivos e vibrantes, sem preocupações com as perspectivas e com a relação de figura e fundo.

Capa do livro "O menino mais bonito do mundo", de Ziraldo

Capa do livro “O menino mais bonito do mundo”, de Ziraldo | Reprodução/Amazon Prime

À medida que os elementos naturais aparecem, o menino passa a escutar a voz de tudo que descobre dizendo para ele: “Menino, como você é bonito”! O sol vai a pino, vem a tarde e a primeira noite, já azulada, em contraste com a primeira, toda escura. Já é possível ver as estrelas!

Nasce, então, o segundo dia. A paisagem ressurge, mas agora o olhar é outro. Os delineamentos sutis e suaves; as cores, em degradê; as formas, difusas; as perspectivas mais realistas. Os traços são do artista plástico Sami Mattar. Outro olhar sobre a (mesma?) paisagem. Nem pior nem melhor, mas diferente.

LEIA TAMBÉM: A música como ferramenta interdisciplinar no Ensino Básico

Veem-se os veios das folhas e dos troncos das árvores, o azul do céu e suas nuances.

O menino se tornou homem. Diante de tudo que via, ouvia: “Como você é bonito”! Na verdade, o menino-homem não está representado nas imagens do livro. O espaço está aberto para nós, leitores, capazes de ver, refletir e sentir.

É chegado, porém, o momento do desconforto, da inquietação diante do querer mais. O homem passa a sentir uma dor bem debaixo das costelas, como aquela que se sente quando se corre muito e se cansa. Falta alguém para que as descobertas prossigam.

Afinal, ninguém aprende sozinho. E, na última página, surge a reprodução da Vênus de Botticelli: bela e sedutora, para abrir as portas a novos conhecimentos e prazeres. Como na gênese bíblica, os dias da criação se sucedem até o surgimento do homem e da mulher.

Ziraldo, nosso “Menino Maluquinho”, produziu muito, fez demais pela formação de leitores em um país carente de iniciativas nesse sentido e deixou uma obra inteira, cheia de poesia, beleza e graça, como na comentada aqui. Uma bibliografia rica: Flicts, A Bela Borboleta, O bichinho da maçã…

Ziraldo foi morar no Planeta Flicts. Agora, é (re)ler sua obra (e de outros tantos) para nos descobrirmos o menino mais bonito ou a menina mais bonita do mundo, que renasce em nós toda vez que abrimos um livro.

Foto de Marli Siqueira Leite

Marli Siqueira Leite

Professora há mais de 30 anos, formada em Letras pela PUC-SP com especialização em Educação pelo Espaço Pedagógico-SP. Após Mestrado em Letras na Ufes, foi professora na própria universidade, no Centro de Educação. Sua dissertação sobre o poeta Ronaldo Azeredo rendeu um livro e a curadoria de uma exposição na Casa das Rosas-SP e no Museu de Arte do Espírito Santo (MAES). Fez Doutorado em Educação na FEUSP e hoje atua como professora na Escola Americana de Vitória. [email protected]