Por que seu filho pede para ler o mesmo livro várias vezes?

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Katharina Ferrari

“Ah não, esse livro outra vez?!”

Eu sei: sua criança pede para ler o mesmo livro 1.500 vezes. 

E ai de você, pai, que se aventurou a substituir a mãe na leitura noturna (e não sabia que a entonação era parte importante da experiência literária): “Pai, não é assim a história! A minha mãe lê diferente!”

Depois do susto de ser “corrigido” por seu pequeno leitor, alegre-se! Isso é bom sinal.

Em primeiro lugar, aperceba-se de que tudo está sendo apresentado a sua criança pela primeira vez. 

Nós, adultos, já subimos e descemos milhares de degraus ao longo da vida, mas a criança, diante de uma escada, encontra os seus primeiros degraus. Ela reflete, admirada, sobre a engrenagem mecânica que move seu corpo para vencê-los; ela recalcula a rota lentamente ao observar a regularidade ou a irregularidade de cada degrau.

Os degraus, um a um, são uma fascinante novidade e, por isso, é preciso repetir a experiência de subi-los e desce-los. Do mesmo modo, nós adultos já vimos milhares de florezinhas pelo caminho (eu realmente espero que você as tenha enxergado!).

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Mas a criança que encontra uma florzinha, pela primeira vez, se depara com um verdadeiro espetáculo: as cores diferentes, as formas das pétalas, o projeto arquitetônico impactante que mantém a flor presa a um caule tão fininho, o terreno de onde esse caule brotou, quer seja terra, uma frestinha no asfalto ou o vaso de plantas da vovó.

Cada florzinha é uma maravilhosa novidade e, por isso, é preciso repetir a experiência de observá-las.

Com os livros acontece o mesmo. Nossos olhos adultos já não enxergam todas as coisas que esses objetos têm para ensinar, mas a criança… a criança degusta a novidade! Ela observa aquela anatomia: um papel mais durinho na frente e outro atrás; no meio vários papéis dobrados que não podem ser arrancados para não perder a história.

A criança que encontra uma florzinha pela primeira vez se depara com um verdadeiro espetáculo. É mesma coisa com os livros

A criança que encontra uma florzinha pela primeira vez se depara com um verdadeiro espetáculo. É mesma coisa com os livros | Foto: Freepik

Ela observa o comportamento leitor: o papai usa as duas mãos para segurar um livro; usa as pontinhas dos dedos para passar as páginas com cuidado; os olhos dele seguem da esquerda para a direita e eles percorrem linha por linha, sem pular.

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Ela começa a compreender a função da linguagem:

  1. A mamãe olha aquelas manchas no papel e entende o que elas significam (aqui está um importante passo para a alfabetização: compreender que as manchas gráficas são letras a que nós, seres humanos, atribuímos um significado!);
  2. A mamãe aponta as cores e as figuras do livro e me deixa olhar para elas por um bom tempo, porque isso também faz parte da história (assim, o livro se transforma numa galeria de arte para a criança, que naturalmente toma contato com a pluralidade das linguagens – verbal, imagética, tipológica, etc – sem que seja preciso apresentá-la a esses conceitos teóricos).

Além disso, um mesmo texto sempre pode ser “melhor lido”. Cada vez que a criança escuta a história (a mesma história!), acessa uma camada de leitura diferente: um detalhe da narrativa que ela sequer tinha percebido, porque teve a atenção “aprisionada” pela frase anterior.

Um objeto no cenário ilustrado do livro que ainda não tinha sido detectado por seus olhinhos astutos e que fez a história ganhar mais uma perspectiva. Uma palavra inusual, que era totalmente desconhecida e que, depois de ter sido repetida várias vezes, incorporou-se ao vocabulário da criança.

Numa perspectiva neurocientífica, a repetição é fundamental para o desenvolvimento infantil.

A previsibilidade – saber o que vem depois de cada frase – deixa o cérebro da criança em condições “confortáveis”. Aquela sensação boa: “isso eu já aprendi!”, dispara hormônios que tornam o pequeno leitor mais confiante em si mesmo e mais aberto para a aquisição de novos conhecimentos.

Ainda, repetir a leitura de uma mesma história ou um mesmo livro reforça os caminhos neurais que o cérebro da criança já produziu (e tudo o que escrevi acima é apenas um ínfimo recorte das muitas atividades cerebrais envolvidas no processo de leitura) e, ao mesmo tempo, estimula novas sinapses.

Portanto, não adianta resistir, as pesquisas científicas fazem coro com seu pequeno leitor: “Sim, de novo! De novo! Esse livro outra vez!”

Respire fundo, lembre-se do que leu nesta coluna e aproveite: em poucos anos, você sentirá saudade desse leitor em início de carreira, esperando ansioso para ouvir sua voz dando vida aos personagens. Releia! 

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Katharina Ferrari

Psicopedagoga e Especialista em Literatura Infantil e Juvenil. Atua como formadora de professores e assessora literária, desenvolvendo mecanismos que contribuam para a efetiva formação de leitores e superação de problemas de aprendizagem com auxílio da literatura. Autora de livro infantil e criadora do podcast "Vem Ká Brincar". @katharinaferrari