Redação do Enem: como a herança africana poderia ser abordada

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Larissa O’Hara

A prova de redação do Enem exige que o candidato produza um texto dissertativo-argumentativo na modalidade escrita formal da língua portuguesa, abordando um tema de relevância social, científica, cultural ou política. Na avaliação, são considerados diversos aspectos que refletem as competências desenvolvidas ao longo da formação do estudante durante a educação básica.

O candidato deve defender um ponto de vista claro e fundamentado sobre o tema proposto, utilizando argumentos consistentes que se apresentem de maneira coerente e coesa, formando uma unidade textual bem estruturada.

Para isso, é essencial que ele selecione, organize e relacione argumentos e fatos que sustentem sua posição. Além disso, a redação deve incluir uma proposta de intervenção social que aborde o problema discutido, respeitando os direitos humanos e promovendo soluções viáveis e éticas.

Em 2024, o tema escolhido foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Um aspecto que chamou minha atenção foi a repetição do termo “desafios para” em relação aos temas dos dois anos anteriores. Em 2023, o tema foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil” e, em 2022, “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”.

Essa repetição na formulação inicial sugere uma certa falta de criatividade e cuidado na elaboração de uma prova dessa magnitude, que deveria levar em consideração as propostas dos anos anteriores.

É importante destacar que o tema deste ano não solicitava diretamente que os candidatos escrevessem uma redação sobre racismo ou preconceito racial, mas sim uma análise mais ampla sobre a valorização da herança africana. Essa distinção mostra-se essencial para a interpretação do tema.

Embora os alunos pudessem, sim, abordar o preconceito racial, deveriam fazê-lo com o foco em como isso se relaciona com os desafios da valorização da herança cultural negra, o que poderia levar a interpretações tangenciais e, possivelmente, à perda de pontos.

O tema está alinhado com as expectativas do Enem, ao abordar questões sociais e culturais relevantes no Brasil, promovendo uma reflexão crítica sobre herança cultural, identidade e representações afro-brasileiras. Essa abordagem permite que os candidatos mostrem um olhar consciente sobre a diversidade cultural, incentivando a superação de estereótipos e a construção de um entendimento mais profundo e respeitoso da história brasileira.

Quanto à coletânea de textos oferecida como suporte, fiquei surpresa com o número total de seis textos, todos trazendo contribuições relevantes para o debate. Esses textos poderiam ter sido utilizados pelos alunos para embasar seus argumentos e enriquecer a elaboração de suas redações, permitindo um aprofundamento no tema proposto. 

texto I conceitua “herança” como o conjunto de crenças, conhecimentos, técnicas, costumes e tradições transmitidos entre gerações, reforçando a importância de entender a herança cultural para que o candidato compreenda o enfoque da prova.

texto II discute o problema de “folclorizar” culturas africanas e afro-brasileiras, ou seja, reduzir essas culturas a representações estereotipadas, desconectadas de seus contextos históricos e sociais, o que limita uma compreensão autêntica de sua contribuição cultural.

texto III traz uma imagem e um provérbio africano — “Quando não souberes para onde ir, olhe para trás e saiba pelo menos de onde vens” —, que destacam a importância de olhar para a história como uma maneira de entender o presente e projetar o futuro.

texto IV narra a história de uma professora negra que, ao relembrar sua experiência escolar, reflete sobre a ausência de discussões sobre a cultura e história afro-brasileiras. Hoje, como educadora, ela busca corrigir essa lacuna, trazendo para a sala de aula livros com protagonistas negros e discutindo figuras importantes como Luiz Gama e Carolina Maria de Jesus.

texto V aborda o samba-enredo da Mangueira de 2019, que celebra figuras da negritude, como Dandara, esposa de Zumbi dos Palmares; Luíza Mahin, revolucionária do período colonial; e Marielle Franco, vereadora assassinada em 2018. O texto também menciona a colonização, a princesa Isabel e questões de resistência, promovendo uma visão crítica da história oficial.

texto VI exemplifica como a arte do grafite pode retratar a herança afro-brasileira, destacando a representação de Zumbi dos Palmares na Pedra do Sal, no Rio de Janeiro.

POR QUE É IMPORTANTE VALORIZAR A HERANÇA AFRICANA NO BRASIL?

A valorização da herança africana no Brasil é fundamental porque essa cultura forma uma base importante da identidade brasileira. Tradições, músicas, danças, religiões e culinária de origem africana não apenas moldam, mas também enriquecem o patrimônio cultural nacional. Além disso, reconhecer essa herança é também um ato de justiça histórica, permitindo valorizar a resistência e a resiliência dos povos africanos e seus descendentes.

O Brasil é marcado pela diversidade étnica e cultural, e celebrar a herança africana reforça o respeito e a inclusão, promovendo uma convivência pacífica e o fortalecimento de uma identidade nacional plural. Isso contribui para uma sociedade mais consciente de sua história e comprometida com a igualdade e o respeito mútuo.

COMO O CANDIDATO PODERIA DESENVOLVER O TEMA?

O candidato deveria estar atento aos termos “desafios”, “valorização” e “herança africana” no contexto brasileiro. “Desafios” refere-se a entraves, dilemas e dificuldades.

A herança africana inclui um vasto conjunto de tradições mantidas pelo povo negro ao longo dos séculos. Valorizá-la implica superar múltiplos desafios, como o racismo estrutural e a desigualdade social, que dificultam o reconhecimento e a promoção das contribuições africanas na sociedade brasileira.

O racismo estrutural está profundamente enraizado, limitando o acesso e a valorização dessa herança nas esferas pública e privada. A desigualdade social, que afeta desproporcionalmente a população afro-brasileira, constitui outra barreira, tornando mais complexa a implementação de políticas e iniciativas culturais que busquem promover essas tradições.

Além disso, a falta de representatividade de pessoas negras em espaços de poder e decisão reduz as possibilidades de valorização dessa cultura nas mídias e políticas públicas. No ambiente educacional, a ausência ou a superficialidade com que a história e a cultura africana são abordadas no currículo escolar perpetuam a invisibilidade e estereótipos, diminuindo o conhecimento e a valorização dessas contribuições.

Adicionalmente, a estigmatização de práticas culturais, especialmente das religiões de matriz africana, reforça o preconceito, dificultando a aceitação e o respeito por essas manifestações. Por fim, o desconhecimento e a falta de interesse pela herança africana representam um entrave considerável, visto que a promoção e a valorização dessa cultura dependem do engajamento coletivo. Esses obstáculos evidenciam a importância de um esforço contínuo e integrado para fortalecer o reconhecimento e o respeito pela herança africana no Brasil.

REPERTÓRIOS PARA A REDAÇÃO

Acredito que o candidato deveria ter optado por repertórios que resgatassem e enaltecessem a história e a cultura afro-brasileiras. Embora muitos redatores recorram a repertórios “coringas” de filósofos como Bauman, Habermas e Durkheim — já bastante familiares aos corretores de redação —, é importante questionar: por que escolher referências centradas em homens brancos europeus em vez de explorar saberes, lutas e conquistas dos negros?

Essa escolha revela justamente os desafios na valorização da figura negra e de sua tradição, história e saberes. A construção do pensamento brasileiro permanece eurocêntrica e branca; portanto, seria fundamental dar espaço na redação para figuras negras importantes, tanto do passado quanto do presente. 

Assim, uma pergunta a se fazer seria: você, candidato, lê autores negros, conhece suas produções culturais e estuda esse universo na escola?

A escritora Djamila Ribeiro, por exemplo, é uma referência contemporânea ao abordar questões raciais de forma clara e engajada. Seu livro “Pequeno Manual Antirracista” reflete a urgência do combate ao racismo estrutural e conquistou o Prêmio Jabuti, tornando-se um dos mais lidos do país.

Segundo Djamila, “É importante desmistificar quem é este sujeito que escreve. Geralmente, o que é mostrado para nós é escrito por homens brancos, ricos ou europeus, como se nós não produzíssemos saber também, como se não estivéssemos escrevendo a História”.

Apesar de o Brasil ter a segunda maior população de origem africana do mundo, o conhecimento sobre a história e cultura africanas é limitado. Para desafiar essa perspectiva, o candidato poderia incluir informações históricas relevantes, como a escravidão, que começou no século XVI com a produção de açúcar.

Os africanos eram tratados como mercadorias e transportados em condições desumanas, resultando na morte de muitos. Nas fazendas e minas, sofriam trabalhos extenuantes e castigos físicos, como o açoite, que era comum durante o Período Colonial.

Além disso, comentar sobre religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé, poderia valorizar essa herança, uma vez que, historicamente, foram associadas ao feitiço e ao mal. Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, é um símbolo da luta pela liberdade dos negros, e a recente sanção do feriado nacional em sua homenagem (20 de novembro) reforça essa relevância.

Além disso, mencionar a Lei 10.639/03, que alterou o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, destacando a ênfase em artes, literatura e história, seria pertinente.

Conceição Evaristo é uma importante representante da literatura negra brasileira, reconhecida nacional e internacionalmente.

Em sua coletânea de contos “Olhos d’Água”, o conto homônimo explora as dores e lutas das mulheres negras em um contexto de exclusão social, destacando a profundidade da narrativa afro-brasileira. Outro exemplo significativo é Carolina Maria de Jesus, cuja trajetória pode ser utilizada como repertório na redação. Recentemente, escrevi um artigo sobre sua história. Para ler, CLIQUE AQUI.

A filosofia de Achille Mbembe, que discute o racismo como uma ferramenta de controle, também enriquece a discussão racial. Outras figuras, como o rapper Mano Brown, reforçam a importância de representações periféricas da cultura negra.

Essas escolhas de repertório poderiam tornar a redação mais autêntica, ampliando o entendimento das questões raciais e promovendo uma valorização genuína da herança africana no Brasil. Há uma infinidade de intertextos possíveis com o tema, como músicas, filmes, livros e acontecimentos históricos que validam a argumentação, principalmente pela voz negra. Penso que abordar o ponto de vista a fala do oprimido seja uma decisão acertada.

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Larissa O’Hara

Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia. Trabalha como professora há mais de quinze anos, tendo atuado em diversas instituições. Já acompanhou o desenvolvimento de centenas de alunos em aulas ministradas em seu curso de redação. Publicou variados livros. Atualmente, é professora efetiva na rede estadual de ensino do Espírito Santo.