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Voz da inclusão

por Feapaes-ES

O livro "O Autismo em Meninas e Mulheres" e a autora, Sílvia Ester Orrú

Crédito: Montagem/ acervo pessoal

Entrevista

Livro lança luz sobre como o autismo se manifesta em meninas e mulheres

Crédito: Montagem/ acervo pessoal

Confira nossa entrevista exclusiva

Vivemos tempos em que, felizmente, o autismo é cada vez mais debatido pela sociedade. Apesar dos preconceitos que seguem existindo, é um grande avanço.

Mas será que o autismo se manifesta de forma igual em todos? Se somos todos diferentes uns dos outros, podemos afirmar o mesmo no caso do autismo.

Prevaleceu durante muito tempo a ideia de que meninas e mulheres são menos suscetíveis aos transtornos do espectro. Porém, cada vez mais cresce a ideia de que esta é uma percepção errada.

O livro “O Autismo em Meninas e Mulheres – Diferença e Interseccionalidade”, da doutora em Educação e professora da Universidade de Brasília Sílvia Ester Orrú (que foi recentemente diagnosticada), chega para somar ao debate.

A coluna Voz da Inclusão traz hoje uma entrevista exclusiva com a autora. O livro pode ser comprado no site da livraria da Editora Vozes.

1 - Como surgiu a ideia do livro "O Autismo em Meninas e Mulheres"?

Desde 1997 eu venho estudando, pesquisando e trabalhando com temáticas inerentes à questão do autismo. Estes estudos e pesquisas sempre foram compartilhados com à comunidade na forma de artigos, capítulos e livros publicados. Em 2023 publiquei o livro “Mulheres em Águas de Piratas: vozes insurgentes da América Latina, África e Ásia em luta contra o patriarcado”, resultado de 3 anos e meio de pesquisa, e que foi semifinalista do Prêmio Jabuti Acadêmico de 2024.

Eu havia planejado escrever um capítulo dedicado às meninas e mulheres na condição singular do autismo. Mas não consegui criar este capítulo articulado à temática do livro. Então, decidi que assim que concluísse a escrita e a publicação do “Mulheres em Águas de Piratas”, eu escreveria um livro dedicado apenas às meninas e às mulheres na condição do autismo. Assim, em fevereiro de 2024, 7 meses depois, o livro “O Autismo em Meninas e Mulheres: Diferença e Interseccionalidade”, já estava chegando à comunidade, publicado pela Editora Vozes.

2 - Muito se fala de como meninas e mulheres no TEA são menos diagnosticadas. Por que isso acontece?

Durante a história da humanidade, a ciência também foi impactada pelos preceitos patriarcais, uma vez que, em sua maioria, eram os homens que falavam sobre tudo, nomeavam, decidiam e registravam tudo, inclusive em relação a: o que é ser mulher; como funcionam seus corpos e mentes; suas (in)capacidades cognitivas, físicas e psicológicas; como devem ser tratadas para controle de seus comportamentos; sexo e seu (des)prazer. Por consequência, no decurso de décadas, os consensos da comunidade médica e científica basearam-se de modo imperante em ideias e noções masculinas sobre o autismo, suscitando uma violenta negligência acerca das singularidades inerentes às mulheres com autismo em pesquisas e espaços da clínica.

Neste sentido, os estudos atuais dos últimos 10 anos apontam que é preciso centrar as principais questões que permeiam a vida das meninas e mulheres no autismo a partir de novos estudos e pesquisas que venham colaborar para uma compreensão mais acurada sobre como o autismo se manifesta no feminino, além da necessidade de se construir instrumentos e métodos para um diagnóstico diferencial com a finalidade de dirimir equívocos e negligências para com elas ao longo da história e da cultura da humanidade.

3 - Casos como o da atriz Letícia Sabatella, diagnosticada já adulta, podem contribuir para uma maior conscientização do diagnóstico para meninas e mulheres?

Sim, e muito! A comunidade médica e científica vem tentando melhorar o entendimento e a disseminação das informações sobre o autismo ao longo dos anos. Neste intento, criaram uma classificação na forma de 3 níveis de suporte baseada na gravidade do autismo e como isso impacta nas demandas pessoais de apoio e desenvolvimento da autonomia. No nível 1 de suporte há necessidade de menos apoio com relação ao nível 2 que demanda mais apoio, sendo este considerado uma manifestação moderada do autismo. O nível 3 de suporte demanda apoio substancial, referindo-se à forma mais grave do autismo. Ocorre que esta divisão de níveis de suporte tem causado muita confusão, desentendimentos, negligências, subestimações e todas as formas de marginalização e exclusão das pessoas que vivem na condição do autismo.

Para as pessoas leigas no assunto, uma mulher como a atriz Letícia Sabatella, que recebeu o diagnóstico médico do autismo na maturidade, ou seja, ela passou toda sua infância, adolescência, juventude e boa parte da vida adulta sem um diagnóstico, ela não é autista, ou se for, ela é nível “leve”, então, ela tem uma vida “normal”, ela não precisa de ajuda, ela não sofre.

Há centenas de mulheres que passaram sua infância, adolescência e juventude mascarando o autismo e se camuflando socialmente em uma busca extenuante de seu encaixe na sociedade. Pessoas que se encontram diagnosticadas nos parâmetros médicos atuais dos níveis 2 e 3 de suporte, de certa forma, são mais “aceitas” como autistas pela sociedade, pois diversas características e demandas de apoio podem ser melhores percebidas visualmente.

No caso de mulheres como a Letícia, diagnosticada como autista nível 1 de suporte, percebe-se uma resistência e até intolerância de muitas pessoas, pois elas se encontram presas em um estereótipo cultural do autismo, onde aquilo que é perceptível visualmente é que determina se aquela pessoa é ou não autista. Nossa sociedade é excludente e extremamente preconceituosa com relação à condições clínicas como a depressão, transtornos alimentares e de ansiedade, dentre tantos que poderíamos citar. Inúmeras mulheres na condição do autismo que requerem menos suporte se comparado ao nível 2 e 3, foram sendo atropeladas pelas insalubridades das relações sociais e sofrem, demasiadamente, com as consequências desse impacto em todas as áreas de sua vida, principalmente em sua saúde mental.

Neste cenário, é importantíssimo que mulheres com visibilidade na mídia e que também se encontram em lugares de privilégio, ocupem esses espaços de fala, pois a imensa maioria das mulheres nesta mesma condição singular do autismo, sequer sabem que experienciam o autismo e que podem ter apoio médico, terapêutico, medicamentoso (se necessário), que podem construir uma vida com mais qualidade e bem-estar. O compartilhar dessas histórias na mídia também contribui para o pensar e a construção e implementação de políticas públicas de saúde, educação e trabalho para todas as pessoas na condição do autismo.

4 - O seu diagnóstico interferiu de alguma forma na sua pesquisa acadêmica?

Eu me reconheço na condição do autismo desde os meus 31 anos de idade, hoje tenho 51 anos. Era uma outra época em que o autismo estava totalmente submerso nos parâmetros da infantilização e da masculinidade pela própria ciência, consequentemente, em todos os demais espaços sociais. Em outras palavras: o autismo era um transtorno encontrado em meninos, excepcionalmente em meninas – adultos, raramente eram avaliados para este diagnóstico. Hoje nos encontramos no auge da Primavera Autista, adultos nesta condição falam, escrevem, militam, por si mesmos e por aqueles que ainda virão depois de nós.

Em 2015 a Editora Vozes publicou o meu livro “Aprendizes com Autismo: aprendizagem por eixos de interesse em espaços não excludentes”. Neste livro eu falo sobre hiperfoco e eixos de interesses como caminhos para a educação, a inclusão, a alegria, a satisfação pessoal, o desenvolvimento de potenciais que poderão ser o autossustento da pessoa na condição singular do autismo. Toda a minha infância e toda a minha vida adulta, portanto, minha vida acadêmica como profissional, foi sempre contornada, orientada e abraçada pelo meu hiperfoco (escrita sobre temas de interesse) e outras particularidades do autismo que estão presentes em minha vida. Escrevo como uma forma de existir e de me expressar desde os meus 9 anos de idade.

Nesta época da escrita desse livro (2012), eu já estava totalmente mergulhada nos meus interesses específicos de estudos e pesquisas sobre autismo, inclusão, direitos humanos, educação na perspectiva inclusiva. A vida acadêmica sempre me foi suficiente pois o meu trabalho era exatamente naquilo que eu queria estudar/pesquisar/fazer e, também, era possível trabalhar do meu jeito, sempre que possível, mais reservada, na minha solitude.

Meu objetivo na academia sempre foi me posicionar e lutar contra a supervalorização do diagnóstico médico em detrimento da pessoa, do ser humano. Infelizmente, quando o diagnóstico médico deixa de ser um instrumento de informação e orientação médica para ser colocado em um pedestal determinante sobre o indivíduo, onde o déficit e a falta precedem a subjetividade do sujeito, há a coisificação do indivíduo.

Consequentemente, nesta perspectiva equivocada sobre o diagnóstico médico, o autismo enquanto condição define o indivíduo, de modo que o sujeito com toda sua subjetividade desaparece, ele não é mais visto e escutado.

Em razão de problemas de saúde que afetam minha vida profissional, é recente minha decisão de tonar pública a minha existência na condição do autismo. Neste sentido, não foi o diagnóstico que interferiu na minha pesquisa acadêmica, mas os acontecimentos da vida que sempre me oportunizaram viver, experimentar, abraçar, estudar, pesquisar, trabalhar e, principalmente, escrever sobre temas que fazem parte de mim, que me constituem e que são meus eixos de interesse.

5 - Alguma mensagem final para leitoras e leitores?

Hoje há substancial informação sobre o autismo disponibilizada na internet e também em livros. É muito importante que toda pessoa que esteja passando por momentos desafiadores em sua saúde física e mental se acolha e busque um profissional da saúde para uma avaliação detalhada. No caso da suspeita da presença do autismo na vida desta pessoa, a busca por um profissional da saúde mental (psiquiatra, psicólogo, psicanalista) é fundamental para a realização de uma avaliação diagnóstica responsável e também para o acompanhamento com apoio psicológico.

Ninguém deve se sentir inferiorizado ou envergonhado por buscar ou necessitar de acolhimento para sua saúde mental, pois essa busca faz toda a diferença para a qualidade de vida e também para o autoconhecimento que é fundamental para conhecer suas fragilidades, os momentos de vulnerabilidade e dedicar-se a si mesma para criar possibilidades de contorno e superação das barreiras identificadas. O autoconhecimento também é essencial, principalmente, para (re)conhecer seus pontos fortes, suas qualidades, o que há de melhor em si, suas habilidades e estratégias possíveis para tornar os desafios cotidianos mais leves e construir propósitos de vida que acolham o coração.

Há braços!