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Antes que seja tarde: para que outros efeitos possam nascer - sobre a série “Adolescência”

O colunista Carlos Queiroz faz uma análise sobre a série "Adolescência". Conhecemos mesmos os nossos filhos? Conhecemos seus símbolos e códigos?

Série Adolescência
Série Adolescência. Foto: Reprodução/vídeo

Quais

São os efeitos do ódio

Quais são os efeitos da injustiça

Quais são os efeitos da dor

Quais

Quais

São os efeitos

A série “Adolescência” tem provocado reflexões sobre um tema cuja relevância cresce — ainda que mais lentamente que os próprios efeitos que dele emanam.

O assunto? De um lado, a masculinidade — frágil, tóxica, doentia, violenta. Do outro, aquelas que têm padecido de seus efeitos: mulheres, transformadas em alvo primário de uma onda crescente de discursos que se convertem em ações. As mulheres têm sido, cada vez mais, mortas, pelo simples fato de serem, mulheres.

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Entretanto, sobre esse assunto, eu deixarei você, leitor, com a indicação de outras leituras muito mais pertinentes e com muito mais competência sobre o assunto.

Recomendo as análises de Byung-Chul Han, sobretudo quando discute o colapso do outro e a crise do afeto, e de Vera Iaconelli, que trata com precisão os efeitos da masculinidade tóxica no contexto brasileiro contemporâneo.

Mas o que desejo abordar aqui é outra camada da série: seu ritmo, sua composição emocional, o modo como a história se diz — e, assim, age. Porque, no fundo, os modos de dizer sempre configuram modos de agir.

Como escrevi em Do Sensível, Poesia, “importa o modo como dizemos e não apenas o que dizemos. A disposição, ou seja, o modo como arranjamos as palavras — e ao mesmo tempo, de quais palavras dispomos — produz e partilha (e não comunica) certo sentido e certa sensibilidade” (p. 187).

Esse pensamento está em diálogo direto com a formulação de Jacques Rancière sobre a estética como partilha do sensível: o que pode ser visto, dito, sentido — e quem tem o direito de dizer ou de sentir. Dizer, portanto, é também desenhar o mundo. É configurar territórios de afeto, de poder e de escuta.

Como muitos de vocês já devem saber e como também já devem ter assistido a inúmeras análise da minissérie, ela possui 4 episódios. E é isso que eles são: episódios — do grego epeisodion, “aquilo que se insere entre os cantos do coro”. Pequenas interrupções que compõem um todo, entrecortando e costurando emoções e sentidos.

Cada um deles é como um capítulo de uma tese, que possui sim, um fio condutor, mas que destoa daquilo que estamos acostumados a ver em produções audiovisuais com essa temática. O foco não está na investigação policial, mas nos efeitos.

O primeiro efeito: a morte

Uma morte gestada por um novelo espesso de sentimentos — entre eles, o ódio e o convívio paradoxal entre uma ilusão de superioridade e uma profunda necessidade de validação externa.

Como lembra Byung-Chul Han, na era do desempenho e da visibilidade, o eu se fragmenta diante da ausência do outro — e nessa ausência, se projeta como potência o que, no fundo, é pura fragilidade.

A série, consciente dessa ferida, não se apressa em oferecer respostas, mas conduz o espectador por um percurso cadenciado, em que a certeza da autoria emerge não como clímax, mas como abismo.

Ao final do episódio, um vídeo revela o incontestável. Resta ao personagem-pai — e a nós — o espanto, e a tentativa de compreender o porquê ou os porquês. A narrativa, nesse sentido, não acelera.

Seu ritmo é quase coreográfico — uma dança lenta e densa, que se recusa a ceder à lógica dopaminérgica dos cliques e cortes rápidos. E é justamente por isso que ela afeta: porque nos faz permanecer.

O segundo efeito: o ambiente

Esse capítulo da série, ambientado na escola, evocou em mim algumas das reflexões de Henry Giroux. Para ele, a escola é um dos principais campos de disputa cultural — um território onde se travam batalhas simbólicas pelas formas de ser, de pensar e de conviver.

Como bactérias, o ódio precisa de um meio propício para se proliferar. E, na série, esse meio é justamente a escola: extensão tanto do subterrâneo da internet quanto de sua superfície visível — as redes sociais.

Trata-se, a meu ver, de um lugar que deveria acolher as diferenças, promover o aprendizado pela criação coletiva e sustentar formas de sociabilidade.

No entanto, como bem insinua a série — e não só ela —, há tempos esse espaço tem sido tomado por lógicas de controle, exclusão e violência. Como define o personagem-investigador, em diálogo com sua parceira, tornou-se “um espaço de aprisionamento”.

Cena da série "Adolescência"
Adolescência é uma minissérie de quatro episódios (Foto: Divulgação/Netflix)

O terceiro efeito: a máscara

O terceiro efeito se apresenta numa cena extremamente densa e intensa: o encontro entre a psicóloga e o jovem autor do crime. Um embate de palavras e silêncios, em que a raiva irrompe como lava, intercalada por momentos de aparente entrega — ou manipulação?

O menino oscila entre a vulnerabilidade e a crueldade, e ali se revela o abismo: o sentimento de superioridade como máscara de uma autopercepção esfacelada, de uma identidade em ruína.

O quarto efeito: a dor

Nesse episódio, estamos diante do núcleo familiar e suas adjacências de convívio e contato. Aqui, somos apresentados, também num ritmo lento, ao conturbado carrossel emocional que se desdobra sobre os pais, que passam a questionar sobre o que eles poderiam ter feito de diferente.

A casa, deixa de ser, portanto, o lugar máximo da segurança. A inviolabilidade do espaço doméstico é invadida sem nem ser percebida. Como um inimigo invisível que só se manifesta por meio dos efeitos. Entretanto, aí já é tarde. Resta a dor.

Eis o que a série nos diz. Eis o que este texto quis dizer.

Porque os modos de dizer moldam os modos de agir — e não há neutralidade nisso.

Na internet, na escola, na casa, no consultório — o discurso age.

Ele fere. Mas também pode curar.

É preciso, portanto, cultivar outros dizeres:

Para

Que outros efeitos

Possam

Nascer

Quais

Quais serão

Os efeitos

De um outro

Dizer

Agir?

REFERÊNCIAS

GIRIOUX, Henry. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Tradução de Daniel Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAN, Byung-Chul. A agonia do eros. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.

IACONELLI, Vera. Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna. São Paulo: Editora Zagodoni, 2020.

QUEIROZ FILHO, Antonio Carlos. Do sensível, poesia: outros modos de grafar o mundo Vitória: Milfontes, 2019.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2009.

Carlos Queiroz

Colunista

Professor do Departamento de Geografia-Ufes e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades-PÓSCOM/Ufes.

Professor do Departamento de Geografia-Ufes e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Territorialidades-PÓSCOM/Ufes.