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A sangue frio: uma verdadeira obra de arte contemporânea

O que define uma obra de arte como verdadeira ou falsa?

“Self”, de Marc Quinn, 1991. Foto: Reprodução
“Self”, de Marc Quinn, 1991. Foto: Reprodução

Uma expressão que me incomoda muito é quando alguém diz, ao se referir a algum tipo de manifestação artística: esta é uma verdadeira obra de arte.

Afirmações como esta pressupõe a existência de obras que podem ser consideradas verdadeiras e, por oposição, as que não podem ser consideradas verdadeiras ou, no senso comum, falsas, mentirosas e fakes como se diz hoje em dia.

Uma obra de arte verdadeira

Haveria, por suposição, uma definição, a priori, do que seria uma obra verdadeira e isto a distinguiria de outras supostamente falsas.

Entenda-se aqui que falsa não significa uma imitação de obra original, mas sim de um tipo de obra que, mesmo realizada dentro de condicionantes definidas para tanto, não cumpririam os requisitos para ser verdadeira, ou seja, não estariam atendendo à uma espécie de padrão de qualidade superior ao qual todas elas deveriam se submeter.

Portanto, aquelas que não configurassem tal qualidade, seriam destacadas como inverídicas, falsas ou fakes e destinadas ao ostracismo e desaparecimento.

Isto explica, em parte, a ausência de certos tipos de obras e artistas no contexto da História da Arte Mundial.  

A obra, a autoria e a apreciação

A ideia de que não há um padrão pré definido de obras de arte leva à consideração de que é possível olhar para as manifestações artísticas atuais e constatar que os processos de criação são diversos, operados por meio de proposições conceituais livres, autorais e criativas.

Não há, como ocorria em momentos pregressos, identificar “estilos” que produzam a “sensação” de estabilidade e hegemonia. É comum encontrar propostas distintas e ao mesmo tempo dialógicas ou, pode-se dizer, interativa.

Não é de se esperar, no contexto das obras atuais, a apresentação de discursos explícitos ou de histórias e narrativas que conduzam a sentidos limitados ou a ideias e conceitos predeterminados, mas sim na existência de um ambiente ou processo no qual autores e apreciadores busquem sintonia e interação por meio delas.

Tal sintonia não significa pensar ou “sentir” as mesmas coisas, mas participar de um processo de geração de experiências estéticas particulares.

Pode-se dizer que tal processo é construído a partir da relação entre três instâncias: autoria, obra e apreciação.

A importância da autoria é inegável, pois implica no trabalho intencional e volitivo de alguém.

A criação é um processo complexo no qual entram fatores cognitivos e pessoais, experiências e conhecimentos que podem gerar resultados infinitos na produção a partir de quem, como e quando produz as Obras de Arte.

Apreciação tem as mesmas condicionantes da autoria

A apreciação tem as mesmas condicionantes da autoria, ou seja, dependem da compreensão, vigência e conhecimento de que as observa.

No entanto, não se pode ignorar que, em termos educacionais ou pessoais, os níveis de compreensão não são os mesmos entre a autoria e a apreciação, portanto, é possível que as proposições artísticas autorais não provoquem as mesmas reações na apreciação, mas várias, outras e diferentes da original.

Esta é uma condição da existência da Arte Visual, o mesmo pode ser dito das diferentes poéticas que constituem as manifestações artísticas como um todo. Bem, resta focar a questão das Obras de Arte.

Cabe dizer, com muita ênfase, que as obras de arte não são “coisas naturais” nem surgem de “inspirações divinas”, por “acaso” ou “por sorte”, são criações originais, sui generis, inovadoras ou até mesmo convencionais ou conservadoras, tudo depende de compreensão, vigência e conhecimento de quem as produz e, consequentemente, de quem as apreende.

Obras de arte são coisas artificiais, elaboradas, intuídas, construídas, projetadas, programadas, pensadas para serem manifestações, expressão, proposição, comunicação de algo, de circunstâncias situacionais ou estado de coisas e, além de tudo, não se deve ignorar que elas estão vinculadas ao que se pode chamar de vigência, ou seja, a correspondência parcial ou integral às condicionantes socioculturais do seu tempo e espaço.

Nem melhor, nem pior

Nesta linha de raciocínio considerar que algumas obras são melhores ou piores do que outras, que exista um modelo que sempre dure ou um padrão sobreponha a outros é, além de desconhecimento, um ato anacrônico por definição.

Se em certos momentos predominaram determinados estilos, modos, técnicas e procedimentos não significa que devessem durar para sempre, mas apenas que atenderam, no seu tempo e lugar, aos interesses dominantes.

A título de exemplo, não se pode dizer que a Arte do antigo Egito era melhor do que a da Grécia antiga, nem que a dos gregos fosse melhor do que as da Roma antiga, tampouco que a do Renascimento seja melhor do que a da Idade Média, nem mesmo do que as que se produz hoje em dia.

A ojeriza que certas falas revelam, sobre manifestações da atualidade, tem mais a ver com uma visão estreita, conservadora e reacionária do que com uma análise histórica e artística.

Mormente, os textos conservadores, se apegam a aspectos plástico-visuais como às representações figurais naturalistas, aos efeitos grandiloquentes ou às habilidades técnicas/autorais de um ou outro autor para justificar suas falas, no entanto, tendem a ignorar as transformações estéticas e conceituais pelas quais a Arte Visual passou ao longo do tempo.

Estabelecem um período ou modelo idealizado em suas concepções e querem induzir as pessoas a concordarem com seu ponto de vista.

Penso que, para demonstrar maior coerência analítica, é mais adequado analisar as condicionantes temporais, sociais, econômicas, políticas e culturais, do momento em que foram criadas, para compreender melhor o que se apresentava ou apresenta no entorno e na época analisada.

Apropriar-se de referenciais dali e daqui, nem sempre, produz análises pertinentes e compatíveis com a realidade. Procurar entender e explicar os motivos pelos quais as Obras de Arte de um tempo e lugar, são como são, é muito mais importante do que tentar dizer como poderiam ou deveriam ser…

O tema dado a este artigo: A sangue frio é a tentativa de criar uma paráfrase com a obra “Self”, de Marc Quinn, 1991, que ilustra este texto, por ser feita com sangue congelado.

A obra consiste numa impressão em 3D, de sua cabeça, produzida com 4,5 litros de seu sangue, a mesma quantidade estimada que contém um corpo humano adulto.

Processo de criação

O processo de criação implicou na retirada periódica de sangue para produção da imagem que, depois de submetida a uma forma, tomada de sua cabeça, foi mantida congelada numa caixa climatizada.

Uma obra de arte, como expus aqui, deve atender, entre outros, alguns requisitos como vigência, conceito e proposição, estes seriam alguns dos que poderiam lhe conferir o status de verdadeira, se acreditasse que “verdade” fosse um critério válido de análise.

Em vista de tudo isto, se tivesse que escolher alguma obra, ironicamente ponderaria: será que há algo mais verdadeiro do que o próprio sangue?

Isaac Antônio Camargo Colunista
Colunista
Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica.