Sempre esqueço como começa. Talvez porque o Carnaval não tenha fronteiras, ele chega e atravessa os dias, nos levando, nos amolecendo.
Mas há um instante em que me dou conta, e não é quando o primeiro tambor reverbera no peito, nem quando a purpurina insiste em ficar na pele: o Carnaval começa quando estou no meio, no meio da cidade, no meio da gambiarra, no meio das pessoas, no meio de mim.
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Costumo dizer que o Carnaval só faz sentido para os que estão dispostos a abandonar a ideia do que acham que são.
Não dá pra pisar na rua apegado às funções sociais que se ocupa na vida cotidiana. Perder-se para o comum, para o coletivo, para a fantasia é um exercício interessante de alargamento da percepção simbólica da vida.
Reencantar a existência
Luiz Antônio Simas que não só estuda, mas também vive o samba, o futebol, as religiões de matriz africana e o Carnaval, tem uma interessante reflexão ao se indagar: por que Carnaval? A resposta está numa postagem em sua conta no instagram (@luizantoniosimas):
Simbólica e materialmente oferecemos nossas individualidades em sacrifício nos carnavais. É como se a festa fosse ainda uma experiência de reencantamento de existências cotidianamente amesquinhadas pelo utilitarismo e pela financeirização completa da vida. A utilidade existencial e profunda do carnaval, deveria ser, a rigor, não ter utilidade alguma.
É nesse sentido que o carnaval e a arte se encontram, pois estão desincumbidos de cumprir qualquer função. Em essência não servem para nada e é nesse lugar que reivindicam a potência do que representam.
Para além da teoria
Sem querer teorizar o que precisa ser vivido – sim, só dá pra dizer sobre o Carnaval sentindo na carne – o filósofo Jorge deLarrosa, fortemente influenciado por Walter Benjamin, pensa a experiência no contexto contemporâneo.
Ele propõe um retorno à experiência como algo que nos atravessa e nos transforma, distanciando do simples acúmulo de informações.
Para ele, a experiência envolve um tempo diferente do tempo produtivo e pragmático da sociedade atual.
O conhecimento da experiência não se dá por um saber técnico ou operacional, mas por um envolvimento afetivo, sensível e reflexivo.
O Carnaval é isso, afeta, espeta, assusta, gargalha. É ritual no espaço público. Se há algum entendimento, ele só acontece depois, quando já fomos levados, quando o tempo vira corpo e o corpo vira rua.
Entre confetes pisados, meia arrastão rasgada, suor compartilhado e o batuque que não cessa, algo se desloca dentro de nós.
Nos dias que seguem fica a ressaca, a saudade e uma outra arquitetura da cidade e da vida, um pulso invisível que sustenta os dias comuns que estão por vir. Efêmero, inútil e brilhante, o meio do Carnaval é não ter meio.