Escolhi a imagem do autorretrato de Gustave Courbet “O Desespero”, de 1843/45, pintado no período de sua mudança para Paris. Talvez o tema “desespero” tenha sido uma tentativa de revelar seu estado de ânimo num momento tenso de sua vida.
Courbet é um dos representantes do Realismo dedicado a apontar problemas e questões sociais. O Realismo foi uma das primeiras tendências artísticas a demonstrar empatia e afetividade em temas e assuntos recolhidos do contexto social para revelar fraturas na condição humana.
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Em tempos de Inteligência Artificial, 180 anos depois da obra de Courbet, a tensão sobre a Arte Visual vem se intensificando.
A expansão dos sistemas tecnológicos digitais computadorizados e disponíveis em rede se tornaram capazes de simular imagens, cujos efeitos de sentido, se assemelham a Obras de Arte.
Ao mesmo tempo, as investidas das mídias de comunicação em rede promovem e enaltecem a capacidade dos programas computacionais de substituir, entre outras atividades humanas, a artística.
É normal, portanto, que a insegurança tenda a se transformar em “desespero”: um comportamento reativo a ameaças.
E daí? É mesmo o fim da Arte?
Como tudo na vida, responder a uma pergunta requer análise de contexto, de um viés, uma diretiva ou até mesmo opinião. Uma pergunta deste porte implica em análises sobre a Arte Visual, tanto em relação ao seu percurso, quanto de falas a seu respeito.
Primeiro é importante destacar o que representa a ideia de “fim”. Ela está diretamente vinculada a um desfecho, término, encerramento, ou seja, algo que a partir do momento que se considera resolvido, está definitivamente encerrado e nada mais se pode fazer.
Péssimo, não?
Contudo, no contexto da Arte Visual, em vários momentos alguém apontou o seu fim. Afirmar que a Arte acabou parte do pressuposto de que, a partir de um dado momento, ela deixaria de ser aquilo que era, no entanto e como se vê, ela continua por aí, firme e forte.
Tomando a ideia de Arte Visual a partir do Período Moderno, do Renascimento, um momento que investe no ressurgimento da Arte recorrendo a cânones tradicionais instaurados a partir da cultura greco-romana.
Esta tendência se consolida com o surgimento das primeiras Academias de Arte que passam a investir num modelo hegemônico de produção artística.
Pode-se dizer que daquele momento em diante tanto o conceito de Arte como se entende ainda hoje é consolidado, quanto o artista é valorizado pela capacidade técnica e intelectual, diferenciando-o do artesão.
O Renascimento acaba sendo responsável por definir um padrão modelo para a produção artística de acordo com o gosto dominante, vinculado ao poder vigente. Assim, a chamada Arte Clássica ou Renascentista tem uma origem e um destino: uma aliada às elites dominantes.
Os temas mais comuns são tomados da mitologia, dos acontecimentos, do enaltecimento do poder dominante da nobreza, do clero e dos gestores da economia mercantil.
Sua forma revela parcimônia, equilíbrio, harmonia e “beleza”: um referencial estético funcional, presente tanto no ambiente urbano das cidades, quanto nos palácios e templos construídos para reforçar a presença dos poderosos.
Contudo, naquele mesmo período, surge uma primeira ruptura ou um fim de ciclo, começa a se delinear o Maneirismo, uma espécie de apropriação da aparência clássica, mas sem a consciência estética reinante. Em seguida, nos séculos XVII e XVIII, o Barroco se torna um estilo importante.
Embora, inicialmente tenha enfrentado uma onda de contestação, por considera-lo de “mau gosto”, inclusive o nome que lhe é dado é uma corruptela da palavra barrueco, do espanhol, que se refere a pérolas imperfeitas, portanto, chamar às manifestações artísticas naquela época de Barroco era deliberadamente uma ofensa. Uma declaração de que tais imagens eram imperfeitas, decadentes em comparação ao Clássico.
Este pequeno relato histórico aponta para o fato de que pensar sobre o fim de algo, implica em ponderar se é mesmo um fim ou um processo de transição que sai de um estado de compreensão para outro.
Mais adiante, no século XIX, Hegel condena a Arte à morte. Na sua visão a Arte Clássica vigente, confrontada pelo Romantismo, deixava de lado a concepção referencial e simbólica que imperava até então a troco de uma visão imaginativa, com o afastamento da natureza e a adoção da espiritualidade ou individualidade humana, logo, deixava de ser algo superior para se tornar algo comezinho, temporal e cotidiano.
Neste sentido, declarar a morte da Arte era simplesmente dizer que: o que ele, no seu tempo acreditava ser Arte, deixava de ser. Por mais crédito que se dê a ele é necessário dizer que toda reflexão filosófica gera modos de pensar que, em alguns momentos, se torna um valor sociocultural na medida em que envolve ou convence mais pessoas a compartilhá-lo e adotá-lo.
Na primeira década do século XX, o Dadaísmo adota uma visão niilista sobre a Arte quando defende proposições sob a nomenclatura de Antiarte. O fato de negar a Arte dentro do processo de criação é um ato contestatório e que, ao mesmo tempo, inaugurou uma nova era conceitual.
As proposições exploratórias, experimentais e criativas passam a ser uma tendência que, mais tarde, irá se tornar base para o surgimento e reconhecimento do que se configura como Arte Conceitual e facilitar a expansão da Arte Contemporânea.
Ainda em meados do século XX, Walter Benjamin manifesta seu desconforto em relação aos processos técnicos de reprodução de imagens.
Pondera que as Obras de Arte, a partir do momento em que são reproduzidas continuamente perdem o que chamou de Aura: uma espécie de envoltura original, autoral e técnica que passa a ser obliterada ou descartada pelos processos de reprodução e distribuição incessante pelas mídias de informação e comunicação, com isto prognostica mais uma espécie de morte da Arte…
Sua postura faz parte de um debate sobre a sociedade e a cultura desencadeado a partir da expansão dos processos e meios recorrentes no contexto da Comunicação de Massa e da intensificação do Consumo. Este fenômeno passa a ser tratado, pela Escola de Frankfurt, como Indústria Cultural.
Quase que simultaneamente, surge um movimento que parece ser uma resposta às avessas à preocupação Benjaminiana e Frankfurtiana: a Pop Art.
A partir da década de 60, os artistas abandonam os temas e assuntos usuais e recorrem justamente aos meios de produção industrial adotando produtos, personalidades e comportamentos consumistas como motivação para suas obras.
A questão não é mais uma negação da Arte como a tradição concebia, mas sim uma apropriação do cotidiano e do banal, oriundos do contexto socioeconômico, para tematizar, subsidiar e subvencionar a Arte. Uma aproximação da Arte com o Marketing, pelo bem ou para o mal, se não fosse morte seria subversão…
No início do século XXI, Arthur Danto, também adota uma postura niilista ao publicar “O Fim da Arte”, um artigo numa revista filosófica em New York. O autor aponta o fim de uma construção histórica que definia tendências, estilos e movimentos como uma linha contínua de transformações.
Constata que, depois do Modernismo e a partir da década de 60/70 do século passado, o que passou a ser entendido como Arte Pós-moderna, já não seguia as tendências de formatação pré-concebida ou de beleza que havia amparado a produção artística pregressa, as manifestações artísticas se tornam fragmentárias, autorais e interativas. Um reflexo do mundo Pós-moderno.
Não se pode dizer, contudo, que as reflexões teóricas difundidas e aceitas ou não no campo da Arte sejam detentoras de verdades absolutas, supremas e eternas, muito longe disso, são modos de ver, pensar e compreender o mundo no tempo e espaço.
Também não se pode desprezar o conhecimento construído e reconhecido ao longo do tempo, pelo contrário, é a base para as transformações posteriores mesmo que, parte dele, perca validade ou se torne anacrônico.
Processo de transformação contínua
Se, de um lado, há um processo de transformação contínua e, de outro, um vasto repertório de dados, informações e conhecimento, seria simplório pensar na morte da Arte. Contudo, colocar a Arte em xeque parece ser uma conduta comum por parte de muitos autores sérios, como também de autores reacionários.
Autores integrados aos processos de compreensão e conhecimento das manifestações artísticas, enquanto fenômenos socioculturais, buscam entender os acontecimentos ao passo que os reacionários, apostam no passado em contraponto ao presente e quando a ruptura com o passado se torna patente, passam a detratar o presente.
Não se pode esquecer que os defensores do status quo e que promoveram a maledicência contra o Impressionismo, Fauvismo, Cubismo em fins do século XIX e início do século XX, ao atacarem a Arte Moderna que se delineava, acabaram rechaçados. Isto se revelou aqui também quando Monteiro Lobato denigre a exposição de Anita Malfatti em 1917.
Tudo o que se prognosticava sobre a morte da Arte em vários momentos ou que estava na UTI, só alimentou a Arte nascitura em processo de gestação. O que se constata é que o Modernismo superou a crise no século XX, se expandiu e deu margem para o surgimento da Arte Contemporânea como é compreendida no século atual.
Não se pode ignorar que as transformações socioculturais provocam choques, geram estranhamento, mas com passar do tempo, tendem a ser compreendidas e integradas ao contexto social, mas não sem sofrer, aqui e ali, ataques retrógrados de inconformismo.
Por que, então, se declara o fim da Arte?
Bem, pode ser uma manifestação negacionista da visão conservadora ao sentir a perda da hegemonia conquistada, pois já que não atende mais gosto dominante, não é mais Arte.
Pode ser a dificuldade de olhar sob nova perspectiva histórica e reconhecer a inexorabilidade das mudanças de paradigmas que se mostram por meio das pesquisas, experimentações e transformações que ocorrem no contexto da Arte.
Uma característica da Arte atual é a liberdade de criação e expressão que possibilita a realização de proposições das mais diferentes tendências e que, aos olhares desavisados, parecem fora do contexto e, portanto, não podem ser Arte, mera falácia…
A Arte Contemporânea tem a seu favor uma infinidade de possibilidades criativas, expressivas e produtivas que não dependem necessariamente de pertencer a um ou outro segmento. Cada artista, dentro da liberdade que lhe cabe, pode instaurar uma tendência a cada dia e até a cada obra, já que a ideia de um estilo ou escola não define a Arte atual.
O processo criativo/apreciativo depende de uma relação interativa na qual tanto quem cria, o que cria, quanto quem aprecia o que foi criado participam. Ambos fazem parte de um processo de mediação que leva em consideração o tempo, o espaço e conhecimento sobre as condicionantes socioculturais nas quais estão inseridos.
Para auxiliar a reflexão sobre a presença e transitoriedade da Arte, trago uma imagem da obra da artista brasileira Néle Azevedo. Um proposição intitulada “Monumento Mínimo”, que resultou de uma pesquisa iniciada em 2003 e que circulou por várias cidades no mundo.
Nada mais emblemático do figuras humanas lançadas à sua própria sorte no meio ambiente. Note-se que tais figuras aparentam pessoas sentadas, são produzidas a partir de formas que, depois de cheias d´água, são congeladas, depois disso são expostas em ambientes urbanos em diálogo com o entorno e com as pessoas que transitam pelo local.
O trabalho instiga e estimula abre várias questões, tanto humanas como ambientais: uma seria a contingência da própria morte, fim de toda vida, simbolizada pela degradação das figuras expostas a alta temperatura ambiente; outra seria chamar a atenção para a inclemência das alterações climáticas que vêm ocorrendo com mais intensidade e frequência nas últimas décadas; outra ainda seria destacar a importância da Arte ao colocar em pauta questões socioambientais.
Ninguém, no mundo, está à salvo da decadência humana, social, ambiental e climática. Neste sentido, se a Arte abre diálogos que demandam reflexões e debates, será que ela está mesmo no fim?
Pense nisto…