“América”, obra de Maurizio Cattelan, instaurada no Palácio de Blenheim, Inglaterra. Foto Leon Neal/Getty Images.
“América”, obra de Maurizio Cattelan, instaurada no Palácio de Blenheim, Inglaterra. Foto Leon Neal/Getty Images.

Primeiramente devo esclarecer o sentido da palavra Escatologia. Sem isto é provável que a compreensão do texto seja equivocada e desviada do assunto principal. Há várias palavras homógrafas na nossa língua, ou seja, grafadas da mesma maneira, mas com sentidos diferentes entre si. É o caso da palavra utilizada como tema para este artigo.

Bem, uma das acepções desta palavra deriva do grego éskhatos, cujo sentido é extremo, último, final. É, em geral, usada no contexto dos estudos teológicos que se referem ao fim do mundo e da humanidade, sobretudo ao Juízo Final. A outra acepção da palavra, também se origina no grego, mas de uma outra palavra, de skatós que, neste caso, se refere a excrementos. Pelo que se observa uma diz respeito à crença do fim da humanidade e outra ao fim que se dá aos dejetos humanos.

No entanto, as motivações para recorrer a esta obra foram as polêmicas dela decorrentes. Como já devem ter percebido, tenho o hábito, talvez péssimo, de revolver tais polêmicas, contudo, ressalvo que não o faço pelos motivos da mídia sensacionalista, mas aproveito os “escândalos”, para clarear aspectos pertinentes ao campo da Arte Visual que, nem sempre são o foco de tais notícias. Então… aos fatos…

Em 2016, “América” um vaso sanitário feito com ouro maciço de 18 quilates, obra do artista Maurizio Cattelan, foi instalado nos reservados do Museu Solomon R. Guggenheim em Nova Iorque. Durante o período em que o vaso ou “trono” esteve à mostra, foi utilizado por milhares de visitantes que podiam utilizá-lo, por 90 segundos, para descarga de seus dejetos fisiológicos. A proposta do artista era criticar, por meio de uma obra participativa, o desequilíbrio da distribuição de riqueza nos EUA, quem sabe do mundo? Muito louvável…

Em 2019, foi novamente instalado no Palácio de Blenheim, em Woodstock próximo de Oxford na Inglaterra, numa mostra que continha várias obras de Cattelan. A ideia era seguir o mesmo ritual que havia sido realizado no Guggenheim em NY.

No entanto, um fato adverso ocorre na ocasião levando a um estado de incredulidade: durante a noite de 14 de setembro o vaso foi roubado alagando o local, causando danos ao patrimônio predial e levando os promotores a um prejuízo, em torno de seis milhões de dólares, valor estimado da obra. Algo em torno de trinta milhões de reais… Obviamente a obra tinha seguro e o valor oferecido pela seguradora para quem desse conta do produto do roubo era de cento e vinte e quatro mil dólares. Pelo visto, a recompensa não compensou, pois o valor do ouro em si era milhares de vezes superior a ela.

Enfim, o que me levou a requentar esta ocorrência foi o fato de que no último mês a justiça inglesa revelou a condenação de mais duas pessoas que praticaram o roubo do Trono de Ouro. Desde 2023, quatro homens já haviam sido acusados do roubo. Em abril de 2024, um deles, já cumprindo uma pena de 17 anos, declarou-se culpado. Em março de 2025, dois outros foram considerados culpados no julgamento por planejarem o roubo e ajudarem a vender o ouro. O vaso, obviamente, não foi recuperado, mas não se aflijam, Cattelan já havia declarado que havia realizado três deles…

Escatologia, contradição e crítica ao sistema

Outro motivo é justamente o fato da Arte Visual, vez ou outra, recorrer à escatologia para realizar suas manifestações. Uma das mais famosas delas é a obra “A Fonte” realizada 101 anos atrás em 1917, por Marcel Duchamp. A obra consiste num urinol, típico de sanitário masculino, apresentado para uma mostra de Arte. Ironicamente reverte a ideia da função do objeto.

Fotografia de Alfred Stieglitz, da obra original de Marcel Duchamp “A Fonte”,de 1917, assinada com o pseudônimo de R. Mutt, com etiqueta de inscrição visível abaixo e à esquerda da obra enviada para a Exposição da Sociedade dos Artistas Independentes. Ao fundo a pintura The Warriors, de Marsden Hartley.

Outro artista italiano, Piero Manzoni realiza em 1961, uma série intitulada, como direi para não chocar? Merde d’artiste. Várias latas de conserva que, segundo o autor, continha seus excrementos, ao natural, coletados e envasados em unidades de 30 grs. vendidas ao preço do peso cotado em ouro. Uma relação, também irônica, entre o valor das Obras de Arte e os valores materiais impostos ou decorrentes das coisas e bens no sistema econômico.

“Merde d’artiste”, Piero manzoni, 1961. Centre Pompidou, Paris. Foto Philippe Migeat.

A atração pelo escatológico parece ser algo recorrente no contexto da Arte Visual. Há vários outros exemplos que confirmam isto. Contudo o que motiva de fato os artistas não é apenas ou necessariamente o aspecto escatológico que tais obras evocam, mas sim a contradição e a hipocrisia que domina o sistema capitalista ao neutralizar obras irônicas e provocativas, que expõem as mazelas sociais e revelam as entranhas e modus operandi do capitalismo, por meio do dinheiro. Não importa o que uma obra revele, como mostra ou denuncie, desde que seja passível de lucro, é aceitável…

Isaac Antônio Camargo

Colunista

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.

Professor, artista e pesquisador, graduado na Licenciatura em Desenho e Plástica, Mestrado em Educação, Doutorado em Comunicação e Semiótica. Atua no ensino no campo da Arte desde 1973, atualmente como professor associado nos cursos de Artes Visuais da UFMS. Desenvolve várias atividades de produção artística participando de mostras e como curador na produção de eventos. Realiza pesquisas sobre e em Arte Visual. Mantém o site www.artevisualensino.com.br destinado ao apoio de atividades didático/pedagógicas e difusão em Arte Visual.