Jonathas de Andrade ocupa o Pavilhão do Brasil como representante do País na Bienal de Veneza, que será aberta neste sábado (23) com uma alegoria feita com partes do corpo e ditados populares.
O prédio tem uma gigantesca orelha à entrada. O artista alagoano, de 40 anos, ilustrou expressões comuns entre os brasileiros, criando uma série de esculturas, videoinstalações e intervenções gráficas, como “faca nos dentes”, “nó na garganta” e “lamber os beiços”.
Não difere muito do que muitos artistas mostram numa Bienal que tem como referência a artista e escritora surrealista britânica Leonora Carrington (1917-2011). Tudo, ou quase tudo, virou ilustração na arte do século 21.
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Segundo essa estética fragmentária, que remete a um frigorífico com olhos, bocas e traseiros, Andrade recicla a ilustração pop de Lichtenstein – são impressos em papelão recortado com pontos reticulados como nos quadrinhos, alegorias com o apelo de gibis.
“São 250 expressões que ganham corpo literalmente”, diz o artista, por telefone, de Veneza. Vale lembrar que, em sua última exposição em São Paulo, ele vestiu sungas em manequins sem vida.
A representação alegórica de um país em que tudo parece à beira do colapso guia a montagem do pavilhão brasileiro em Veneza.
“Quando imaginei essa alegoria do Brasil, pensei, claro, no carnaval, no delírio carnavalesco, assim como no poder das expressões idiomáticas que conectam a coletividade”, justifica Jonathas.
E, faltou concluir, pensou também nas próximas eleições. Há um “dedo podre” e uma urna eletrônica que levam o visitante a uma associação inevitável com as mazelas de políticos e eleitores.
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A Bienal de Veneza tem nesta edição um número recorde de artistas mulheres entre mais de 200 artistas, o que é coerente com o tributo a Leonora Carrington, artista que passou sua vida no México – basicamente em instituições psiquiátricas.
O universo fantástico de Carrington tem muito a ver com sua biografia inventada, em que ela nasce de um cruzamento híbrido entre um humano (sua mãe) e uma máquina.
A curadora da mostra italiana, Cecilia Alemani, primeira mulher a dirigir a Bienal em 130 anos, quis traduzir o mundo pós-pandêmico, em que, de certa forma, muitos perderam sua identidade, viraram robôs ou simplesmente números por causa da covid-19.
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A pandemia, acrescenta Jonathas, também tem a ver com seu trabalho em Veneza. Um coração saindo pela boca ilustra a expressão por meio de um balão inflado que vai tomando corpo e invadindo o espaço, oprimindo o espectador e dificultando seu acesso a outras obras no pavilhão.
“Como o corpo reage à compressão de um coração que fica do tamanho de uma pessoa?” Ele fez a si mesmo a pergunta que, no passado, artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape fizeram – Oiticica ao criar o Parangolé, Lygia Clark, ao inventar o seu Corpo Coletivo, e Lygia Pape, ao bolar seu Divisor.
Parangolé
A representação metafórica das partes do corpo como poder do coletivo, segundo Jonathas, acolhe “tantas matizes sociais, classistas e de gênero que o paralelismo com a potência da literalidade é um convite para remexer essas energias”.
Embora meio século separe o alagoano dos citados artistas, todos mortos, o Brasil não mudou muito – ou mudou, para pior. No passado, ao vestir um Parangolé, a pessoa abandonava seu papel de espectador passivo para se tornar parte da obra de arte.
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No Divisor de Lygia Pape, todos estavam unidos sob um lençol de dimensões continentais. Com o Brasil polarizado, essa união parece utópica. Jonathas não usa truísmos de modo ingênuo, a exemplo da artista conceitual Jenny Holzer.
Representar o país em Veneza virou, então, um incômodo? “Não, representar o Brasil é uma honra, pois essas imagens têm um poder gigante, o de mostrar que o presente histórico e o passado doloroso, de censura às liberdades individuais, estão conectados.”
Para evitar uma tradução livre de expressões idiomáticas, Jonathas pediu aos tradutores que fossem fiéis aos ditados populares, despertando a curiosidade do público.
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Há aí uma coerência que converge para o tema surrealista da Bienal de Veneza, inspirado num livro infantil de Leonora Carrington, The Milk of Dreams.
Nele, a escritora britânica fala de um mundo em que criaturas híbridas passam por metamorfoses constantes, capazes de se transformar em qualquer ser ou coisa. Robôs? Transformers? Quem sabe? O futuro chegou cedo demais.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.