Artigo

Carmélia: a arquitetura na transformação urbana, cultural e social

São 50 anos da morte de Carmélia Maria, mulher negra, lésbica e autodidata que deixou marcas na cultura do ES

Centro Cultural Carmélia, em Vitória
Centro Cultural Carmélia, em Vitória. Foto: Divulgação - Governo do ES - Rodrigo Schena / Raisa Haig

*Artigo escrito por Priscila Ceolin Gonçalves Pereira, arquiteta e urbanista, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Espírito Santo (CAU-ES).

No mês de fevereiro, relembramos os 50 anos do falecimento de Carmélia Maria de Souza, uma das figuras mais importantes da literatura e do jornalismo capixaba.

Mulher negra, lésbica e autodidata, Carmélia revolucionou a cena cultural do Espírito Santo nas décadas de 1950 e 1960, deixando um legado de resistência e democratização da cultura.

Seu nome batiza um dos espaços culturais mais simbólicos de Vitória: o Centro Cultural Carmélia Maria de Souza.

Localizado no bairro Mário Cypreste, uma região historicamente marcada por vulnerabilidade social e desafios urbanos, o Carmélia foi concebido não apenas como um equipamento cultural, mas como um projeto arquitetônico voltado à requalificação do entorno.

Inaugurado em 1986, foi projetado pelo arquiteto José Daher Filho para transformar um antigo galpão do Instituto Brasileiro do Café (IBC) em um espaço multifuncional, integrando cultura, lazer e esporte de forma acessível e inclusiva.

A concepção arquitetônica do Carmélia reflete uma visão inovadora de cidade, onde os espaços culturais são agentes de transformação social.

Daher propôs a remoção de muros e a criação de uma rua interna conectando o acesso à Segunda Ponte à pracinha de Caratoíra, integrando o equipamento à malha urbana e estimulando o fluxo de pessoas.

Essa estratégia reforça a arquitetura como um elemento de inclusão, rompendo barreiras físicas e simbólicas.

Com dois auditórios (um para teatro e outro para cinema), quatro galerias para oficinas de arte, artesanato e literatura, além de uma praça de vivência, o projeto do Carmélia foi pensado para unir cultura popular e erudita em um mesmo ambiente.

Como dizia Daher: “A arte pode nos salvar”. Sua concepção de arquitetura não se limitava à funcionalidade, mas buscava transformar vidas através do acesso à cultura.

Durante seus anos de atividade, o Carmélia se tornou um centro de efervescência cultural, recebendo festivais de cinema, mostras de direitos humanos, peças teatrais e manifestações político-culturais.

A ocupação do espaço por diferentes linguagens artísticas contribuiu para fortalecer a identidade local e democratizar o acesso à cultura em uma região de escassez de equipamentos culturais.

Carmélia fechou as portas em 2013

No entanto, a falta de manutenção e investimentos levou ao abandono do espaço. Em 2013, o Carmélia fechou suas portas, e a proposta da União de transformá-lo em um depósito de café gerou uma onda de protestos de artistas, ativistas e moradores.

A mobilização popular foi essencial para impedir a descaracterização do patrimônio e ressaltar sua importância para a cidade.

Após anos de negociações, em 2021 a União cedeu o espaço ao Governo do Estado por 20 anos, com o compromisso de revitalização.

O investimento de R$ 25 milhões tem como objetivo transformar o Carmélia em um polo cultural e de comunicação, integrando a TV Educativa, a Rádio Espírito Santo e a Fundação Carmélia.

As obras incluem a reforma do Teatro José Carlos de Oliveira, que voltará a receber espetáculos, shows e projeções audiovisuais.

O novo projeto também prevê salas de exposição, camarins modernizados e uma cafeteria, tornando o espaço um ponto de encontro para a comunidade e um atrativo turístico para Vitória.

A previsão é que as obras sejam concluídas em 2026, devolvendo à cidade um espaço que é mais do que um teatro: um símbolo de resistência cultural e de urbanismo inclusivo.

O Carmélia representa um modelo de como a arquitetura pode resgatar não apenas um patrimônio físico, mas também um legado imaterial de identidade e pertencimento.

O caso do Carmélia demonstra que a revitalização de espaços urbanos vai além da requalificação estética: trata-se de um investimento no potencial humano, na democratização da cultura e na criação de cidades mais dinâmicas e integradas.

Ao resgatar esse patrimônio, Vitória não apenas preserva sua história, mas também reafirma arquitetura como uma ferramenta essencial de transformação urbana e social.