Espaço Educação

A ilha, a aquarela e o papel transformador da escola

A escola, como um território privilegiado de convivência e aprendizagem, pode – e deve – ser um lugar onde a infância acontece plenamente

Foto: Freepik
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A frase de Paulo Freire – “Não é possível à escola […] alhear-se das condições sociais, culturais, econômicas de seus alunos, de suas famílias, de seus vizinhos”1 – nos convoca a refletir sobre o papel da escola como espaço de transformação social. 

A educação não deve ser vista como um processo apartado das realidades vividas por seus alunos, mas como uma prática profundamente enraizada no compromisso com a inclusão, a escuta ativa e a promoção de condições que favoreçam o pleno desenvolvimento humano.

Escola não é apenas um local de aprendizado

Essa perspectiva nos leva a enxergar a escola não apenas como um local de aprendizado, mas como um ambiente que acolhe, valoriza diferenças e impulsiona mudanças coletivas, abrindo caminhos para um futuro de oportunidades.

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Lembro-me de um episódio que uma amiga, professora de Artes, compartilhou comigo. Durante uma aula, numa escola pública de periferia de Vitória-ES, ela elogiava o desenho de uma aluna e comentou: “Que linda a sua ilha!”.

A resposta da menina veio com uma expressão sonhadora: “Quando eu tiver dinheiro, vou comprar uma”. Intrigada, a professora perguntou: “O quê? Uma ilha?”. E a aluna respondeu: “Não, uma aquarela…”.

Esse diálogo, aparentemente simples, revelou um abismo profundo entre o imaginário e a realidade.

A ilha, vista como algo grandioso e inatingível, foi substituída pela modesta aquarela – um sonho pequeno, mas igualmente distante para uma criança marcada pela desigualdade social.

Duas visões de mundo

O contraste não está apenas entre o que foi dito pela professora e o que foi sonhado pela aluna, mas entre duas visões de mundo: a fantasia expansiva de quem pode imaginar sem limites e o desejo modesto de quem, vivendo na privação, sonha com o mínimo.

O anseio por algo tão básico como uma aquarela mostra uma das facetas mais duras da desigualdade social: a impossibilidade, para muitos, de acessar os meios de expressão artística e cultural.

A fala da aluna transcende o contexto escolar e nos interpela: como podemos, enquanto educadores, superar essas barreiras?

Minha amiga e eu não falamos muito sobre o episódio na ocasião. Pensamos juntas, silenciosamente.

Contudo, ficou claro para nós que histórias como essa são uma presença constante no cotidiano escolar: dolorosas, mas também potencialmente transformadoras.

Elas nos desafiam a ressignificar práticas pedagógicas, renovando nosso olhar para infâncias marginalizadas.

Território privilegiado de convivência e aprendizagem

A escola, como um território privilegiado de convivência e aprendizagem, pode – e deve – ser um lugar onde a infância acontece plenamente.

Conforme assegurado pelo artigo 205 da Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à educação deve visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, ao preparo para a cidadania e à qualificação para o trabalho.

Mais do que isso, a escola precisa ser um ambiente onde crianças possam ser, essencialmente, crianças: livres para imaginar, criar e sonhar.

É na escola que se constrói o desenvolvimento integral

O papel da escola vai muito além da transmissão de conteúdos. É nela que se constrói o desenvolvimento integral – físico, cognitivo, emocional e social.

É também por meio dela que se combate a pobreza e se promove a equidade. O fato de a aluna poder ter acesso a esse material, ao menos no ambiente escolar, reforça essa ideia.

O diálogo entre minha amiga e sua aluna reflete, por um lado, a realidade da menina e, por outro, o impacto que histórias como essa têm sobre o imaginário docente.

É angustiante para o professor ouvir histórias de privação, de violência ou abandono. Alguns alunos passam por tantas dificuldades, que a escola acaba se tornando um refúgio. 

Relatos simbólicos muitas vezes passam despercebidos entre os professores, apesar de serem importantes para reflexões coletivas.

Faltam momentos para compartilhar nossas angústias

Embora muitos educadores sejam comprometidos, faltam momentos para compartilhar nossas angústias. Talvez nos calemos por medo de que o peso dessas histórias nos enfraqueça.

No entanto, não podemos – nem deveríamos – nos blindar dessas narrativas que marcam nosso dia a dia e, muitas vezes, nos pegam de surpresa.

A educação nos desafia a equilibrar a dureza da realidade com a força da sensibilidade. Com uma abordagem crítica, é possível construir uma prática pedagógica que, como minha amiga demonstrou, ainda encontra sentido na promoção da diversidade e da mudança social.

É esse olhar humanizado que nos faz acreditar que a escola pode, de fato, ser o alicerce de um futuro mais justo e equitativo.

REFERÊNCIA

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 65. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011

*Texto dedicado à Thiara, com quem muito aprendo a ser professora

Larissa O’Hara Colunista
Colunista
Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia.