Alguma vez, uma palavra do português já parou você no tempo, como se carregasse um universo inteiro a ser desvendado?
“Vicissitude” é um exemplo perfeito disso – uma palavra longa, cujas três primeiras sílabas parecem sussurrar no ouvido dúvida, enquanto as duas últimas chegam firmes, oferecendo uma alternativa carregada de atitude.
Palavras menos usuais carregam beleza peculiar
Certas palavras, mesmo menos usuais e esquecidas em um canto da língua, carregam uma beleza peculiar, como “tergiversar”, que parece nos confundir.
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Sua pronúncia é quase um subterfúgio, uma armadilha sonora que nos faz tropeçar, tal qual o sentido, que remete à arte de desviar ou fugir do essencial.
Um ensinamento: signo linguístico é arbitrário
Ferdinand de Saussure, linguista que revolucionou os estudos modernos da linguagem, ensinou que o signo linguístico é arbitrário: não há relação intrínseca entre a palavra e o objeto que ela representa.
Ainda assim, seja pela musicalidade ou pelo poder sugestivo, acabamos atribuindo emoções a essas combinações de fonemas.
Pense em “lancinante”, uma palavra que carrega o peso de uma dor aguda e pungente, como se cada sílaba fosse um golpe.
Também há palavras que soam únicas, verdadeiras joias, como “idiossincrasia”. Quem ousa usá-la parece carregar consigo um diploma de intelectualidade.
É como se essa palavra, além de designar algo peculiar, exigisse, por si só, uma postura única de quem a pronuncia.
Contexto em que aparece torna a palavra fascinante
Talvez o fascínio pelas palavras resida no contexto em que aparecem – sofisticado ou irreverente –, ou talvez seja o som esplendoroso que elas produzem, como “inexorável”.
Sua força ecoa o próprio significado: algo que não cede, que permanece firme diante de súplicas.
Até mesmo quando questionada sobre sua ortoepia, essa palavra resiste altiva, como se sua essência fosse desafiar as incertezas.
Deslumbro-me diariamente com as palavras. Em alguns momentos, sinto que sou diferente por prestar tanta atenção a elas, em todas as suas tonalidades. Sim, as palavras têm tons — de cores e de sons.
Teia neural de ordem inconsciente
Cada palavra misteriosa nos transporta a uma teia neural de ordem inconsciente, por vezes indecifrável, como “arroubo”, que, embora remeta a “roubo”, nos extasia com sua intensidade emocional.
Enquanto algumas palavras nos fascinam, outras nos frustram. Quer exemplo mais eloquente do que “balaústre”?
Toda a imponência de sua sonoridade se desfaz diante de um significado modesto: uma pequena coluna ornamental em cercas ou parapeitos.
Algumas palavras parecem carregar imagens
Há palavras tão marcantes que parecem carregar imagens, quase como pinturas. “Feérico”, por exemplo, é mágica e luminosa, transportando-nos para mundos fantásticos.
Por outro lado, algumas palavras arrancam risos ou críticas.
Quem ainda se despede com um “ósculos e amplexos” em um e-mail parece vestir um manto de sofisticação, mas acaba revelando algo quase cômico: uma pompa ultrapassada que escorrega facilmente para a cafonice.
Quando eu era criança, minha avó, subitamente, dava-lhe na veneta de usar essa palavra – “veneta” –, uma escolha que, admito, soava um tanto empolada, já que fugia completamente ao vocabulário habitual do nosso convívio familiar.
Ainda assim, eu acabava entendendo seu significado pelo contexto.
Se um dia eu vivesse em outro país, cuja língua fosse diferente da minha, ainda assim manteria meus monólogos em português.
Língua materna é essencial para desatar nós do pensamento
A língua materna é essencial para desatar os nós do pensamento e dar forma às inquietações.
Em outra língua, é possível nos comunicarmos de forma prática e direta, mas retira as nuances que usamos para elaborar nossas neuroses e sutilezas.
As palavras que nos deslumbram são as que nos desnudam: mostram nossa inquietação frente à realidade.
Não sei ao certo se elas nos fazem apaixonar pela língua ou se nos intimidam com a imensidão de possibilidades ao criar qualquer texto.
Sei que, entre o encanto e o assombro, há uma beleza infinita na tentativa de dar forma ao que parece indizível.