O autor e cartunista Ziraldo em frente a um mural gigante pintado por ele, em 1967
O autor e cartunista Ziraldo em frente a um mural gigante pintado por ele, em 1967 | Foto: Fernando Frazão

Literatura é literatura. Dispensa adjetivos. Não é boa nem má. Não é infantil, juvenil ou adulta. Simplesmente é ou não é literatura. Envolvida com o universo das crianças e dos adolescentes durante muitos anos, sempre me incomodou a classificação literatura “infantil” ou “infantojuvenil”.

É evidente que, quando se escreve pensando nessas faixas etárias, deve-se buscar uma linguagem mais apropriada a esse universo. A produção também demanda cuidados com o tema e com o volume do texto, dado o fôlego de leitura dos mais novos, ainda breve.

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No entanto, como chamar, por exemplo, “O menino mais bonito do mundo”, de Ziraldo, de uma obra voltada apenas para crianças, se o livro é pura poesia sobre a arte de ver e encanta os leitores há tempos: dos netos aos avós?

Na capa, um olho gigante, tendo o sol como pupila, anuncia o mundo prestes a acontecer. A obra é dividida em três partes.

Da escuridão caótica, às primeiras imagens da manhã: é o nascer do primeiro dia. A paisagem, da então menina artista Apoena Medina, com 10 anos na época, faz-se de cores intensas, bem delineadas por contornos pretos.

Estão aí os traços da criança desenhista: vivos e vibrantes, sem preocupações com as perspectivas e com a relação de figura e fundo.

Capa do livro "O menino mais bonito do mundo", de Ziraldo
Capa do livro “O menino mais bonito do mundo”, de Ziraldo | Reprodução/Amazon Prime

À medida que os elementos naturais aparecem, o menino passa a escutar a voz de tudo que descobre dizendo para ele: “Menino, como você é bonito”! O sol vai a pino, vem a tarde e a primeira noite, já azulada, em contraste com a primeira, toda escura. Já é possível ver as estrelas!

Nasce, então, o segundo dia. A paisagem ressurge, mas agora o olhar é outro. Os delineamentos sutis e suaves; as cores, em degradê; as formas, difusas; as perspectivas mais realistas. Os traços são do artista plástico Sami Mattar. Outro olhar sobre a (mesma?) paisagem. Nem pior nem melhor, mas diferente.

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Veem-se os veios das folhas e dos troncos das árvores, o azul do céu e suas nuances.

O menino se tornou homem. Diante de tudo que via, ouvia: “Como você é bonito”! Na verdade, o menino-homem não está representado nas imagens do livro. O espaço está aberto para nós, leitores, capazes de ver, refletir e sentir.

É chegado, porém, o momento do desconforto, da inquietação diante do querer mais. O homem passa a sentir uma dor bem debaixo das costelas, como aquela que se sente quando se corre muito e se cansa. Falta alguém para que as descobertas prossigam.

Afinal, ninguém aprende sozinho. E, na última página, surge a reprodução da Vênus de Botticelli: bela e sedutora, para abrir as portas a novos conhecimentos e prazeres. Como na gênese bíblica, os dias da criação se sucedem até o surgimento do homem e da mulher.

Ziraldo, nosso “Menino Maluquinho”, produziu muito, fez demais pela formação de leitores em um país carente de iniciativas nesse sentido e deixou uma obra inteira, cheia de poesia, beleza e graça, como na comentada aqui. Uma bibliografia rica: Flicts, A Bela Borboleta, O bichinho da maçã…

Ziraldo foi morar no Planeta Flicts. Agora, é (re)ler sua obra (e de outros tantos) para nos descobrirmos o menino mais bonito ou a menina mais bonita do mundo, que renasce em nós toda vez que abrimos um livro.