O cantor Jão encerrou, no sábado (18), no Allianz Parque (São Paulo), sua “SuperTurnê”, que entra para a história como um dos feitos mais impressionantes de um artista pop brasileiro. Iniciada em janeiro de 2024 no mesmo Allianz, ela contabiliza 14 apresentações nas principais capitais brasileiras e um faturamento de mais de R$ 70 milhões (só o cachê do cantor ficou na faixa de R$ 1 milhão por show).
É um feito notável para quem não possui sequer uma década de carreira. Nascido em Américo Brasiliense, no interior de São Paulo, João Vitor Romania Balbino –o apelido Jão nasceu de tanto que sua irmã o chamava assim– se iniciou no universo artístico em 2016, cantando covers na plataforma de streamings YouTube. Em pouco mais de dois anos, lançou seu primeiro disco, Lobos. Inicialmente distribuído pelo streaming, virou CD e LP de tanto que os fãs pediram por algo em formato físico.
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Musicalmente, Jão é adepto de um estilo que pode ser chamado de ‘sofrência pop’. É um híbrido entre o sertanejo moderno e a música internacional, com letras que falam de desamores e perdas. Nesse sentido, ele está para a geração atual como Renato Russo, da Legião Urbana, estava para os adolescentes dos anos 1980 e 1990: existe uma identificação com o sofrimento expresso em canções como Vou Morrer Sozinho e Essa Eu Fiz pro Nosso Amor.
Jão representa ainda uma nova maneira do público encarar seus ídolos. Bissexual assumido, ele namora Pedro Tófani, produtor musical e diretor criativo das turnês do cantor. Em tempos passados, um popstar ‘sair do armário’ seria um assassinato de carreira. Mas, felizmente, isso nunca se tornou um empecilho para sua aceitação. Aliás, desde que ele estreou no mercado, tem visto sua plateia aumentar cada vez mais.
Em entrevista ao Estadão, o cantor paulista fala de SuperTurnê, revela que tem baixa autoestima e conta sobre o material inédito de Cazuza que recebeu de Lucinha Araújo, mãe do cantor e compositor carioca.
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Pergunta: Você está encerrando uma das turnês mais ambiciosas do showbiz brasileiro. Que balanço faz da temporada?
Resposta: “Sou uma pessoa muito diferente de quando iniciei a SuperTurnê, em janeiro de 2024. No mínimo, ganhei mais confiança e minha autoestima aumentou. Engraçado é que foi preciso que eu fizesse apresentações em estádio para pensar: “Acho que sou bom nisso, sabe? Mereço esse sucesso.” Na verdade, sempre quis ir mais além na minha carreira. É que faltava dinheiro. Eu também o fato das pessoas demonstrarem tanto o sentimento delas para mim me fez me sentir cada vez mais aceito. Me deixou mais leve.”
Você fala em autoestima. Tinha baixa autoestima?
“Tinha não, tenho baixa autoestima. Mas, melhorei muito. Se você tivesse me conhecido antes… Por outro lado, fui um pouco cara de pau para fazer minhas escolhas artísticas. Tudo que tinha para fazer eu fiz eu: fui jurado de concurso k-pop, eu fazia karaokê, barzinho… Hoje, nada mais me constrange.”
É essa cara de pau que faz você ser suspenso a 30 metros de altura por uma corda, como faz no show?
“Ah, sim. Sabe que minha mãe não via essa cena? Ela ficava de costas. Ela pediu para a minha tia avisar quando eu tinha parado de subir. Só assim ela assistia.”
Uma vez comentei com Dudu Borges, um dos maiores produtores da vertente pop do sertanejo, que você seria o maior nome do sertanejo atual. Você se vê como um artista desse gênero?
“Não, nem chego perto deles. Sou o maior no que me propus a fazer. Foi uma carreira sonhada, batalhada, desde muito cedo. Mas a história do sertanejo na minha vida é engraçada porque ele sempre esteve presente. Onde eu nasci (em Américo Brasiliense, a 315km de distância de São Paulo) sempre se tocou muito sertanejo. E por mais pop que eu seja, eu sou brasileiro, né? As minhas raízes estão na minha música, aparecem o tempo inteiro. E em SuperTurnê eu uso até chapéu (risos). Gosto de confundir as pessoas. Quando elas iam no meu primeiro show, que tinha uma cruz, pensavam que eu era um artista gospel.”
Em setembro de 2024, você lançou Mal, single em parceria com o cantor Gustavo Miotto. Que é sertanejo.
“Gosto muito do Gustavo. E sempre pensei que, se fosse fazer parceria com algum artista desse gênero, teria de ser com alguém que tivesse ideias semelhantes às minhas. A gente ficou de fazer outra música, mas não conseguimos terminar a tempo. Sou uma lesma no WhatsApp…”
Você pertence a uma geração na qual as barreiras musicais praticamente não existem. Não tem aquela divisão de rock, funk, sertanejo, rap… Acredita que um dos motivos do teu sucesso está no fato dela ser mais aberta a outros gêneros musicais?
“Eu acho perfeita essa falta de barreiras musicais. Se eu tivesse surgido no início dos anos 2000, por exemplo, seria muito mais difícil sobreviver musicalmente. Iriam me encaixar em algum estilo do qual eu jamais sairia. A época em que eu aconteci foi propícia para eu ser o artista que almejava ser. Hoje, aliás, nada mais é unânime. Hoje todo mundo pode escolher o que quer ouvir e o que deseja ser. O que é muito propício para um tipo de música que eu quero fazer. Nesse sentido, acho que no Brasil uma pessoa que parece comigo é o Matuê. Montamos o nosso próprio mundo”.
Falando em sobrevivência artística. Você declarou abertamente ser bissexual. Tempos atrás, essa revelação seria a falência artística de um popstar. É uma geração mais aberta?
“Ah, não tem como dizer que não. É um privilégio muito grande para mim. Os artistas que vieram antes sofreram e batalharam contra o preconceito. Nunca escondi nada, nem tinha como esconder. Eu já namorava, todo mundo à minha volta sabia do meu relacionamento. Então, sempre fiz questão de que fosse a coisa mais natural possível entre mim e meus fãs. Algo do tipo: ‘Tem esse cara que tá fazendo sucesso e ele é assim.’ Sim, essa questão me afeta. Mas não da forma que afetou as pessoas do passado. Conquistamos um espaço. Por outro lado, temos de ter cuidado para não regredirmos nos avanços que conquistamos. Estamos chegando lá, estamos chegando… Aí, vem uma onda meio estranha e gera um retrocesso nas liberdades que conquistamos”.
Outra curiosidade no teu trabalho é a maneira com a qual você é apresentado. Cantoras como Pabllo Vittar e Gloria Groove, por exemplo, são apresentadas como drag queens, antes mesmo de serem chamadas de intérpretes – por mais talento que tenham. Você é chamado de cantor pop, e raramente é tua bissexualidade é mencionada.
“Falamos para públicos diferentes. Pabllo é imensa, um grande acontecimento no cenário musical brasileiro. A forma como ela desenvolveu a música pop, os sons que usa, a forma como se apresenta… Sou apaixonado por ela. Cada grupo precisa de figuras para representá-lo. Talvez eu não esteja presente tanto para o público dela e ela não represente tanto para o meu público.”
O que vem depois de SuperTurnê?
“Tenho algumas coisas que eu já comecei a escrever. Os períodos de turnê são momentos nos quais eu escrevo muito. A estrada dos shows vai me dando uma adrenalina, uma vontade de fazer as coisas.”
Lucinha Araújo, mãe do Cazuza, teria entregue a você um monte de letras inéditas dele…
“Não são bem letras inéditas, tem muitas outras coisas. Tenho vontade de fazer um projeto, de ser um instrumento para que a obra dele esteja sempre viva, mas não quero soar como um artista cover. A família dele é espetacular e quero fazer algo mais respeitoso possível. Recebi um punhado de letras e rascunhos do Cazuza e quero encontrar a forma e a hora certa de fazer esse projeto nascer.”
É verdade que você chegou a pensar em ser artista de musicais e tentou fazer Cabaret?
“Eu fiz um teste de Cabaret. Mas fui sabotado! Eu queria ser o MC (personagem que rendeu um Oscar ao ator Joel Grey). Sabia todas as falas… Os meus colegas que também estavam fazendo teste chegaram para mim e falaram: ‘Não combina muito com você!’ E eu, banana, aceitei a sugestão e fui fazer teste para outro personagem. Não passei, mas acho que também não passaria no teste para o MC.”
Você é um menino de Américo Brasiliense que se tornou um popstar. Mas manteve o mesmo empresário e até o mesmo namorado. Por que não sucumbiu à fama?
“Eu tinha tudo para pirar e isso só não ocorreu porque tenho essas pessoas ao meu lado até hoje. Eu, às vezes, sou apresentado a artistas novos e vejo um sentimento muito ruim rodear essas pessoas e o grupo que as cerca. Todas as pessoas que eu gosto, têm carreiras longas. Presto muita atenção na equipe e vejo que são amigos, familiares ou parceiros que tiveram o mesmo sonho que você. Isso é fundamental para que você não se torne apenas uma maquininha de gerar dinheiro.
Eu morro de medo que as coisas sejam tiradas de mim. Não os bens materiais, porque isso para mim é secundário. Mas eu tenho medo de que alguém fale: ‘Acabou, era só isso que a gente tinha para te oferecer. Pega suas coisas e vai embora.'”
Ou seja, tudo se resume a uma necessidade de aceitação.
“Não falei que tinha problemas de baixa autoestima?”