São Paulo – Só pode ter sido pegadinha a historinha contada por seu primeiro biógrafo, Forkel, de que as Variações Goldberg nasceram como encomenda a Bach em 1741 para escrever música que fizesse dormir o insone conde Keyserling. Bach queria mesmo explorar ao limite a música para teclado. A langorosa Sarabanda, cujo baixo dá o mote para as trinta variações que se seguem, retorna ao final, soando praticamente outra música, após a odisseia que partilhamos de carona no barco do contraponto bachiano.
Outra pegadinha é chamar de sonata (como fez o compositor) a imensa peça pianística que Charles Ives escreveu, quase 200 anos depois. É verdade que ela tem quatro movimentos, mas constrói-se como o filósofo Emerson, ídolo de Ives, em suas reflexões: por frases, ou por períodos, mais do que em sequência lógica. Escreve Ives que “antes de uma conferência, ele rabiscava no papel suas ideias sobre o tema à medida que lhe vinham ao espírito, e a juntava ao sabor do momento.” É assim que evolui a gigantesca Concord.
Em suma, a primeira, em vez de induzir ao sono, provoca um estado de excitação elevadíssimo. E a segunda não quer tirar o sono de ninguém; espanta até hoje os ouvidos europeizados de quem se horroriza com suas brincadeiras misturando o tema do destino da quinta sinfonia de Beethoven com hinos e ragtimes.
Duas obras-primas, ambas atemporais. Quando reclamaram da excessiva dificuldade técnica de sua peça, Ives respondeu: “Que culpa têm os compositores se o homem tem só dez dedos?”. Bach, de seu lado, previu um cravo com dois teclados, para superar a ausência de dinâmica do instrumento. Isso potencializa as dificuldades técnicas extraordinárias de quem as enfrenta num moderno Steinway.
O pianista americano Jeremy Denk fez destas duas obras degraus decisivos de uma carreira brilhante em gravações para a Nonesuch. A ideia de juntá-las num só recital é arriscadíssima. Dois Everests na mesma noite. Denk os escala com fabuloso e sutil senso de compreensão da essência de cada uma. Em Ives, combina a ginga de pianista de ragtime (em “Emerson”) com a de virtuose (no dificílimo “Hawthorne”), sem esquecer da veia romântica na famosa “pérola negra” (variação 25).
Tira de letra o emaranhado de mãos e dedos nas onze variações originais para cravo com dois manuais. Tem a técnica e musicalidade dos grandes artistas, em sentido absoluto. Denk caminha rapidamente para um posto muito elevado no círculo dos melhores pianistas da atualidade.