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O som redescoberto: a instalação "Sentinelas", do artista Paulo Vivacqua

Num texto poético, o artista, escritor e músico Elton Pinheiro faz uma análise crítica sobre a instalação sonora "Sentinelas", localizada no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha.

O artista Paulo Vivacqua na obra Sentinelas, no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha - ES. Foto: Edson Chagas
O artista Paulo Vivacqua na obra Sentinelas, no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha - ES. Foto: Edson Chagas

Estou com os pés na terra e atravesso o círculo das “Sentinelas”. Elas parecem totens que por encantamento surgiram no mundo natural e observam enquanto caminho.

Estou ladeado por monitores brancos que emitem, organizados em pares, um áudio que tem uma duração; trata-se de uma forma matematicamente estabelecida, com a qual o artista Paulo Vivacqua determinou uma série de emissões sonoras, que ao seu próprio tempo sucedem, expandem e silenciam tornando misterioso o corpo da instalação.

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Esse diálogo possível vem ao meu espírito como uma insofismável orquestração, dando voz ao vento que, por vezes, engole as árvores, quando me lanço de um ao outro lado, indo à borda e para fora da peça.

Instalada no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila-Velha, a obra faz minha caminhada cada vez mais sensorial pela espera e pela audição, onde também está o corpo de todo o parque: ele me parece respirar com seus próprios ruídos e fazer o contraponto do real do lugar.

“Sentinelas” é uma instalação sonora e já integrou as exposições Prêmio Arte e Patrimônio [Palácio Gustavo Capanema, 2008] e TREBLE [Sculpture Center, NY, 2004].

A obra estabelece, através de duplas de monitores, a emissão de uma faixa de áudio que se estende de forma modificada a partir de uma chave que varia de 8 a 64 segundos.

Segundo Vivacqua, “Um som que se desloca no espaço, mas de acordo com a proximidade que existe entre cada par de sentinelas. Aqui, no caso, são quatro pares.”

Há uma importância nesses segundos que fazem durar o som de forma diferente no tempo: O trabalho se move nele.

A acuidade com o registro sonoro parece ser em si mesma um espaço de elaboração do artista, tanto quanto a inalienável presença antropomórfica das Sentinelas, sobre as quais ele divaga: “A ideia de sentinelas é realmente uma referência a essa figura antropomórfica que são esses aparelhinhos no espaço”.

Essa presença física (elaboração recorrente na obra do artista, onde de chegada temos, além do som, uma experiência visível com aparelhos tecnológicos que se tornam parte de sua poética) mostra ainda velando o trabalho, que se estabelecerá mais adiante por uma certa regência (musical, eis o tempo) e finalmente pelo caminho de cada ouvinte, apreciador em sua independência, onde a obra estará aberta à interação.

Muito embora a fisicalidade da obra fale através das peças industrializadas, a assertividade com a qual Vivacqua trabalha o som está depois desse primeiro impacto, onde uma série de intervalos sonoros adensa ainda mais sua estrutura, ele diz:

“O intervalo é estruturante”; e explica que há nos sons do áudio uma relação vertical, de harmonia, “no sentido de empilhamento de sons, sons simultâneos” e uma relação horizontal, “uma polifonia, uma sucessão, uma melodia”.

Ocorre que a faixa sonora de Sentinelas é um áudio trabalhado pelo artista em seu estúdio, por onde a questão intervalar foi parte de uma composição:

“Os intervalos de frequência estão organizados verticalmente no acorde. Um som que parece um coral, um vento… e tem uma complexidade harmônica dentro dele… Justamente dos intervalos que dão a cor daquele som.”

“Sentinelas”, uma obra entre intervalos e limites

Enquanto no mundo experimentamos o excesso sonoro como força motriz para uma continuidade mais ou menos sem eloquência, embora bastante administrável pelo discurso de barulhos domesticados, na instalação “Sentinelas” existe, além da presença de um mistério nos monitores de som e no nome da instalação, um debruçar sobre a história dos sons.

Assim como um estudo sobre a memória deles, uma vez que o áudio trabalhado por Paulo Vivacqua é fruto de um laboratório de pesquisa. O artista lida com um material sonoro desenvolvido pelo programador/artista italiano Giorgio Sancristoforo:

“Um programador brilhante, um artista… ele estuda sintetizadores analógicos meio esquecidos no tempo, japoneses, umas coisas complexas e menos usuais… e reproduz os modelos digitalmente, é uma obra de arte como programação”.

O artista utiliza o software programado por Sancristoforo de um sint japonês “que trabalha com parâmetros estatísticos de composição… com ele você tem um âmbito, estabelece um range, entre dois limites[9]”.

Sentinelas é uma experiência em que os limites estão estabelecidos matematicamente, como na arquitetura sonora do compositor Ianis Xenakis; “Tem relação com o pensamento do Xenakis… são pontos que se retroalimentam, é estocástico.”, e na duração do tempo que alterna a expansão do som e retarda o silêncio como espaço.

O artista procura criar através de uma espécie de cluster (várias notas tocadas ao mesmo tempo, que formam um acorde) um novo som que se propaga pelas Sentinelas em duplas, quando duram cada qual ao seu modo até acabar. É um arrojo sutil.

Em todo o tempo existem intervalos e limites. Essa devastação tão linda que nos habita a vida por vezes vem como um ensaio-poema através do lado de lá: o desconhecido, e alguma inadequação dos fatos de cá, a inescapável audição do real do mundo.

Há que se escutar nas vozes das Sentinelas esse cluster dissuadido, mas também a perda da audição.

O silêncio e o eco

É nodal falar da perda do som. O que silenciou, e no que ecoará. Ela está na estruturação que organiza o trabalho, que por uma subtração contrai em silêncio. Esse cálculo de hiatos sustenta a observação dos pares de Sentinelas sobre o espectador, sobre nós:

“Em cada par (de Sentinelas) existe um determinado intervalo de som, que é a metade do par anterior, então o primeiro par tem o som de 8 segundos, com intervalo de 8 segundos de silêncio, sucessivamente o outro é de 16 segundos de som e 16 silêncio, o outro com 32 segundos de som e 32 de silêncio, e 64 segundos de som e 64 de silêncio.”

Nesse registo a obra nos dá a perda do som como elemento, o silêncio de efeito imaginário, criador: “A alternância entre canais, no espaço, faz o som, que mimetiza o vento, de certa maneira, dispara uma relação com o imaginário…”.

É pela subtração que a obra se estabelece numa relação de interrogação e surpresa, pelo que o artista comenta: “…porque parece uma espécie de encanto, ou um chamado… ele se desloca dentro dessa estrutura matemática… de proporções…”.

Se temos na obra uma soma de tecnologias que nos remetem à indústria, ora em convívio com o que é orgânico no Parque, por outro lado há um adensamento sonoro estabelecido tanto pela composição do próprio som em intervalos de frequências, quanto pelas suas pausas, criando sua perda e suas perguntas: encanto, chamado, sussurro, medo, memória, alumbramento… pelos quais Paulo Vivacqua deseja “Abrir silêncios para que aquilo (o som) faça sentido”.

Esse procedimento faz o som mais afeito ao espaço que às ordenações de arpejos que ressaltariam uma memória já anterior à experiência de estar entre as Sentinelas. Essa racionalização na obra, um tanto escultórica na sua lógica interna, talvez seja um eco de um efeito de nuvem, e “uma nova plástica sonora” como em Ianis Xenakis?

“Exatamente, da nuvem… para o Xenakis não interessa uma nota, o que interessa é um cluster, um conjunto de notas juntas que cria uma nota nova…”.

Esse efeito espacial na instalação, por vezes interrompido pelos hiatos num silêncio também crescente, se constitui como possibilidade de criação através de uma escuta abissal, presente, interior.

Um feito da arte sonora é registrar no espaço uma espécie de som-imagem desarraigada das sequências harmônicas ou mesmo melódicas já previamente estabelecidas (e conhecidas), e que guardam em si uma definição para a estética ou o regozijo sensorial por serem mais uma vez reconhecidas.

Já o som que habita o espaço permite uma outra apreciação, onde o pensamento está na escuta – do que existe, excede ou falta à sensorialidade.

Se quem experimenta andar por entre as “Sentinelas” escuta essa perda, com ela pode criar um sentido, (nas palavras do artista, “Abrir silêncios para que aquilo faça sentido”) e talvez escute a si: o som, o som-imagem, o tempo-música, assim como as palavras de um poema, dizem nas sutilezas de uma voragem que de súbito a obra nos revela, desde que a procuremos, nos intervalos recônditos dentro de nós. Em um caminho que nos pertence.

Ficha técnica da Instalação

Artista | Paulo Vivacqua
Produtora | Elaine Pinheiro
Arquiteta | Daniela Bissoli
Consultoria de áudio | Eber Pinheiro e João Marcos Nascimento
Técnico de som | Aguinaldo Sachetto
Eletricista | Magno Silva
Montagem | André Magnago e Danilo Porphírio (Cabelo)
Fotógrafo | Edson Chagas
Videomaker | Ricardo Sá

Elton Pinheiro Colunista
Colunista
Compositor, poeta, artista visual, mestre em Arte Visuais pela UFES. Publicou o livro de poemas "Orações com vícios de linguagem"(2008-ES).