Pelé, com seus dribles desconcertantes e lances geniais, encantou também quem não era do cenário esportivo. Referências na cultura nacional, no jornalismo e na literatura, o cronista, jornalista e teatrólogo Nelson Rodrigues (1912-1980) e o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) destacaram o jogador Edson Arantes do Nascimento em seus escritos, já enxergando nele uma grande estrela do futebol.
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Pelé ganhou o apelido de “rei”, pela primeira vez, por causa de Rodrigues, numa crônica. Isso três meses antes da primeira Copa conquistada pelo Brasil na Suécia, numa espécie de profecia.
O jornalista ficou encantado com aquele jogador franzino de 17 anos numa partida que acompanhou no Maracanã, no Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1958. Foi um Santos e América-RJ que se enfrentaram pela primeira rodada do Torneio Rio-São Paulo.
O clube santista venceu o time carioca por 5 a 3. Dos cinco gols do Santos, quatro foram marcados por Pelé.
“Sozinho, liquidou a partida, monopolizou o placar”, declarou o jornalista, autor de “À Sombra das Chuteiras Imortais”, uma coletânea de crônicas esportivas.
Ele gostou tanto da atuação daquele garoto que lhe dedicou uma crônica inteirinha, intitulada “A realeza de Pelé”. A crônica foi publicada na revista Manchete Esportiva, em 8 de março de 1958.
Já Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no Jornal do Brasil em 28 de novembro de 1969, sob o título “Pelé 1.000”. Era uma referência ao gol de número 1.000 do Rei do Futebol, feito em cima do Vasco. Em 19 de novembro, num Maracanã com 80 mil pessoas.
O jogo Santos x Vasco caminhava para um empate, estava em 1 x 1. Aos 33 minutos, Pelé foi derrubado por Fernando, zagueiro vascaíno. O árbitro Manuel Amaro de Lima marcou a penalidade.
O camisa 10 foi para a cobrança, deu uma paradinha e chutou no canto esquerdo. O goleiro Andrada chegou a tocar na bola, mas sem sucesso. Aos 34 minutos e 12 segundos, o Rei do Futebol marcou o milésimo gol.
“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”, escreveu Drummond na crônica.
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A imprensa invadiu o gramado. Pelé declarou: “O povo brasileiro não pode esquecer das crianças”. Ainda em campo, deu a volta olímpica com a camisa do Vasco, estampada com o número 1000 nas costas.
Confira as crônicas:
A REALEZA DE PELÉ (Nelson Rodrigues)
Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo.
Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
Manchete Esportiva, 8 de março de 1958.
PELÉ: 1000 (Carlos Drummond de Andrade)
O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.
Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta – negativamente – em nossa bibliografia.
Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está-se rindo a distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que nele se imprimem, pois aquela não era a combinação de letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!
Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste… Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que o imploram, e, distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento.
A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser da natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam?
Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário? O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico.
Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são de sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.
Jornal do Brasil, 19 de novembro de 1969