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Pelé foi "Rei" pela 1ª vez em crônica de Nelson Rodrigues e gol 1000 foi celebrado por Drummond

Leia as crônicas do teatrólogo e cronista e do poeta que eternizaram na crônica literária os lances e dribles geniais de Edson Arantes do Nascimento

Foto: Reprodução / Instagram

Pelé durante a Copa da Suécia em 1958: o garoto de 17 anos encantou Nelson Rodrigues e ganhou o apelido de “Rei” numa crônica , três meses antes da primeira conquista do Brasil

Pelé, com seus dribles desconcertantes e lances geniais, encantou também quem não era do cenário esportivo. Referências na cultura nacional, no jornalismo e na literatura, o cronista, jornalista e teatrólogo Nelson Rodrigues (1912-1980) e o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) destacaram o jogador Edson Arantes do Nascimento em seus escritos, já enxergando nele uma grande estrela do futebol.

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Pelé ganhou o apelido de “rei”, pela primeira vez, por causa de Rodrigues, numa crônica. Isso três meses antes da primeira Copa conquistada pelo Brasil na Suécia, numa espécie de profecia. 

 O jornalista ficou encantado com aquele jogador franzino de 17 anos numa partida que acompanhou no Maracanã, no Rio de Janeiro, no dia 26 de fevereiro de 1958. Foi um Santos e América-RJ que se enfrentaram pela primeira rodada do Torneio Rio-São Paulo. 

O clube santista venceu o time carioca por 5 a 3. Dos cinco gols do Santos, quatro foram marcados por Pelé.

“Sozinho, liquidou a partida, monopolizou o placar”, declarou o jornalista, autor de “À Sombra das Chuteiras Imortais”, uma coletânea de crônicas esportivas. 

Ele gostou tanto da atuação daquele garoto que lhe dedicou uma crônica inteirinha, intitulada “A realeza de Pelé”. A crônica foi publicada na revista Manchete Esportiva, em 8 de março de 1958.

Já Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica no Jornal do Brasil em 28 de novembro de 1969, sob o título “Pelé 1.000”. Era uma referência ao gol de número 1.000 do Rei do Futebol, feito em cima do Vasco. Em 19 de novembro, num Maracanã com 80 mil pessoas. 

Foto: Reprodução / Instagram

De pênalti, Pelé marcou seu milésimo gol e virou tema de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade

O jogo Santos x Vasco caminhava para um empate, estava em 1 x 1. Aos 33 minutos, Pelé foi derrubado por Fernando, zagueiro vascaíno. O árbitro Manuel Amaro de Lima marcou a penalidade. 

O camisa 10 foi para a cobrança, deu uma paradinha e chutou no canto esquerdo. O goleiro Andrada chegou a tocar na bola, mas sem sucesso. Aos 34 minutos e 12 segundos, o Rei do Futebol marcou o milésimo gol.

“O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”, escreveu Drummond na crônica. 

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A imprensa invadiu o gramado. Pelé declarou: “O povo brasileiro não pode esquecer das crianças”. Ainda em campo, deu a volta olímpica com a camisa do Vasco, estampada com o número 1000 nas costas.

Confira as crônicas: 

A REALEZA DE PELÉ (Nelson Rodrigues)

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo.

Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Manchete Esportiva, 8 de março de 1958.

PELÉ: 1000 (Carlos Drummond de Andrade)

O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer. O gol.

Que adianta escrever mil livros, como simples resultado de aplicação mecânica, mãos batendo máquina de manhã à noite, traseiro posto na almofada, palavras dóceis e resignadas ao uso incolor? O livro único, este não há condições, regras, receitas, códigos, cólicas que o façam existir, e só ele conta – negativamente – em nossa bibliografia.

Romancistas que não capturam o romance, poetas de que o poema está-se rindo a distância, pensadores que palmilham o batido pensamento alheio, em vão circulamos na pista durante 50 anos. O muito papel que sujamos continua alvo, alheio às letras que nele se imprimem, pois aquela não era a combinação de letras que ele exigia de nós. E quantos metros cúbicos de suor, para chegar a esse não-resultado!

Então o gol independe de nossa vontade, formação e mestria? Receio que sim. Produto divino, talvez? Mas, se não valem exortações, apelos cabalísticos, bossas mágicas para que ele se manifeste… Se é de Deus, Deus se diverte negando-o aos que o imploram, e, distribuindo-o a seu capricho, Deus sabe a quem, às vezes um mau elemento.

A obra de arte, em forma de gol ou de texto, casa, pintura, som, dança e outras mais, parece antes coisa-em-ser da natureza, revelada arbitrariamente, quase que à revelia do instrumento humano usado para a revelação. Se a obrigação é aprender, por que todos que aprendem não a realizam?

Por que só este ou aquele chega a realizá-la? Por que não há 11 Pelés em cada time? Ou 10, para dar uma chance ao time adversário? O Rei chega ao milésimo gol (sem pressa, até se permitindo o charme de retificar para menos a contagem) por uma fatalidade à margem do seu saber técnico e artístico.

Na realidade, está lavrando sempre o mesmo tento perfeito, pois outros tentos menos apurados não são de sua competência. Sabe apenas fazer o máximo, e quando deixa de destacar-se no campo é porque até ele tem instantes de não-Pelé, como os não-Pelés que somos todos.

Jornal do Brasil, 19 de novembro de 1969