
*Reportagem de Matheus Ribeiro, estudante de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Quando a Marvel Studios e a Disney+ anunciaram que dariam continuidade às histórias do vigilante mascarado Demolidor e de seu arqui-rival Wilson Fisk, a internet comemorou. Já fazia anos que os fãs pediam pelo retorno da série, que foi prematuramente cancelada pela Netflix, em 2018.
Caracterizada pelo seu teor mais maduro e sombrio, o drama estrelado por Charlie Cox como o advogado cego que enfrenta o crime em Hell’s Kitchen foi aclamado pelas cenas de ação criativas e o roteiro de excelência, que inovava na forma de adaptar super-heróis para as telas. Por isso, havia muita antecipação para saber se a continuação da Disney+ seria capaz de atender às altas expectativas do público.
LEIA TAMBÉM:
- “Heartstopper” vai virar filme após três temporadas da série da Netflix
- Saiba como assistir a “Conclave”, filme do Oscar sobre as eleições para um novo papa
- O caso real que inspirou um dos filmes de terror mais famosos da história
Na nova versão da trama, Matt Murdock abandona o manto do Demolidor após uma tragédia, porém, problemas surgem quando seu arqui-inimigo, Wilson Fisk, decide concorrer à prefeitura de Nova Iorque, colocando os dois em rota de colisão mais uma vez.
Polêmica nas gravações
É impossível falar de Demolidor: Renascido sem citar as controvérsias envolvendo suas extensas regravações. Inicialmente, a série planejava ignorar a versão da Netflix e servir como um recomeço para esses personagens, o que foi alvo de muitas críticas de fãs.
Após a gravação de seis dos nove episódios que constituem a temporada, porém, os executivos da Marvel, insatisfeitos com o resultado obtido até então, desligaram grande parte dos envolvidos na série e contrataram uma nova equipe para finalizar a temporada.
Dessa forma, o roteirista Dario Scardapane, que havia escrito para O Justiceiro, derivada de Demolidor, e a dupla de diretores Justin Benson e Aaron Moorhead, de Loki, foram recrutados com a missão de gravar um novo primeiro episódio, os dois últimos da temporada, e ainda gravar cenas novas para os episódios já finalizados, no intuito de fazer com que o material original funcionasse de forma mais eficiente, coesa e se conectasse com a série da Netflix.
Toda essa confusão envolvendo as ligações entre a série original e a nova versão reflete um desafio central que Renascido precisou enfrentar desde sua concepção: não importa o quão boa e criativa a série fosse, ela estaria sempre à sombra da primeira versão.
Um quebra-cabeça chamado Demolidor: Renascido
Preso entre uma versão que busca desesperadamente fugir de tudo o que a série original representava e uma que tenta reencontrar aquele lugar de familiaridade, Demolidor: Renascido é um Monstro de Frankenstein em forma de série.
Essa falta de estabilidade é um problema tremendo na construção da narrativa e da montagem da série. É perceptível ver a série intercalando entre cenas antigas e refilmagens. Tanto pela estética mais carregada e presente que Benson e Moorhead trazem, quanto pelo texto com mais conteúdo e peso dramático, as cenas refilmadas se mostram, em grande parte das vezes, muito melhores que as originais.
Isso não significa que o material original seja de todo ruim. O trabalho de Charlie Cox e Vincent D’Onofrio em toda a série é primoroso, e eles ajudam a carregar a narrativa mesmo quando a trama não se sustenta tanto assim. O arco do Tigre Branco é outro ponto extremamente positivo anterior às refilmagens. A performance de Kamar de los Reyes, falecido em 2023, é sublime e ajuda a definir o tom da narrativa já no início.
Por outro lado, esse material peca bastante em desenvolver as histórias e personagens adjacentes a Matt e Fisk. Existem atuações e ideias de personagens interessantes, como a Heather de Margarita Levieva, a Kirsten de Nikki M. James e a Sheila de Zabryna Guevara, mas essas personagens demoram a receber atenção apropriada da narrativa, principalmente nos primeiros episódios. Outros personagens, como o Cherry de Clark Johnson, sequer conseguem justificar suas existências ao fim dos nove episódios que compõem essa temporada.
É, porém, no material regravado que a série sustenta a maior parte de seus trunfos. Ao longo de pequenas cenas inseridas nos episódios, a nova equipe consegue amarrar o material anterior de forma surpreendentemente coesa, ainda que um pouco desconjuntada em momentos. A verdade é que, para uma colcha de retalhos em forma de série, Demolidor: Renascido é muito melhor do que deveria ser.
Dentro de todo esse material novo, é possível tirar bastante coisa proveitosa. Desde cenas que ajudam a melhor desenvolver os arcos dos personagens e os temas da narrativa até os ótimos retornos de atores da série original, que provam, de uma vez por todas, que a ideia de removê-los da trama era a pior possível.
É ótimo assistir a esse elenco retornar aos personagens após quase uma década de forma extremamente natural. Única atriz do elenco original a retornar de forma integral à série além de Cox e D’Onofrio, Ayelet Zurer tem seus melhores momentos até agora como Vanessa Fisk; Wilson Bethel e Jon Bernthal brilham em seus episódios como o criminoso Mercenário e o vigilante Justiceiro; Elden Henson ajuda a dar a alma e o coração da série numa breve participação como Foggy Nelson e, finalmente, Deborah Ann Woll prova mais uma vez que não existe Demolidor sem Karen Page.
O final compensa
Ao fim dos sete episódios montados por cenas antigas e novas, receber os dois episódios que finalizam a temporada é recompensador. É só aqui que Scardapane, Benson e Moorhead têm a oportunidade de mostrar sua visão completa para os personagens e o que o futuro da série reserva.
As diferenças são imediatamente percebidas; os personagens antigos estão melhores do que nunca, e os novos passam a funcionar muito melhor. A direção e a fotografia passam a ser muito mais inspiradas, com planos interessantíssimos e cheios de significado. A série realmente toma forma e mostra a que veio.
Benson e Moorhead fazem um trabalho visual interessante nesses episódios finais. Se em Loki eles já haviam mostrado sua competência em criar e compor imagens em seus planos, aqui eles impressionam ainda mais. É uma direção bastante marcada, bem definida e de muita competência.
Se em muitos momentos Renascido parecia uma versão genérica e diluída da série da Netflix, aqui, ela se transforma em uma série tão estilosa quanto, ainda que de formas completamente diferentes.
No fim das contas, Demolidor: Renascido funciona, ainda que com arestas a serem aparadas. O primeiro ano da série termina com a promessa de que a segunda temporada, já confirmada, possa corrigir esses problemas e trazer uma visão mais sólida e consistente para os personagens.
Terminar a temporada com esse gostinho de esperança para o futuro talvez seja a grande realização de Demolidor: Renascido no que diz respeito ao legado da série original. A série parece, finalmente, entender que estar à sombra da versão da Netflix não é necessariamente um problema. Afinal, havia uma razão pela qual o público clamava pelo retorno do programa. E que prazer enorme é revisitar essa história e ver o Demolidor renascer.