Economia

Cooperativa quilombola no Norte do ES é referência no Brasil

Cooperativa de São Domingos, no Norte do Estado, é a primeira cooperativa quilombola de prestação de serviços florestais do Brasil

Foto: Reprodução TV Vitória
Trabalhadores da Cooperativa de São Domingos, Norte do Estado, realizam a roçada em campo

Historicamente, o quilombo foi uma das formas de resistência e sobrevivência adotada pela população escravizada de origem africana em diferentes regiões do Brasil. As condições degradantes da escravidão, a abundância de espaços habitáveis e um desejo intenso de liberdade foram fatores que levaram à formação desses agrupamentos.

Para a historiadora Ana Paula Rocha, do Círculo Palmarino, as comunidades quilombolas marcam a presença das populações africanas no Brasil e são símbolos de luta.

“Os quilombos são experiências reais do povo negro de enfrentamento a desumanização e a desapropriação das condições de vida. Ao longo de todo território brasileiro e da américa, existem esses espaços reais de resistência.”, afirma.

Não se sabe ao certo quantos quilombolas existem hoje no Brasil. Segundo um levantamento da Fundação Cultural Palmares, são 3.524 grupos remanescentes. No ano passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou um levantamento que apontou que o Espírito Santo tem 15.993 quilombolas, dos 1.133.106 residentes no Brasil.

Os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no Norte do Estado, concentram o maior número de comunidades quilombolas: são 32 comunidades em uma região conhecida como Sapê do Norte. A comunidade quilombola de Córrego São Domingos, uma das mais tradicionais do Estado, se destaca pelo cooperativismo. Há mais de três gerações os descendentes de quilombolas vivem e mantêm sua cultura. 

Em 2014, os moradores fundaram a Cooperativa dos Trabalhadores Rurais e Agricultores da Comunidade Quilombola do Córrego de São Domingos (CTRA). Essa é a primeira cooperativa quilombola de prestação de serviços florestais do Brasil e atua no serviço de preparação de terreno, cultivo e colheita e atualmente conta com 32 trabalhadores, sendo 21 cooperados e 12 contratados. Todos os envolvidos nas atividades são quilombolas. O presidente da empresa, Jobes Alexandrino, contou que a iniciativa mudou a vida da população local.

“Fundamos a cooperativa há oito anos e ela surgiu para transformar. Antigamente não tínhamos trabalho, a nossa atuação era no mercado informal, sem renda ou salário fixo. Nossa vida hoje é completamente diferente. Temos crédito e somos reconhecidos em todo o Espírito Santo”, definiu Jobes VilaNova Alexandrino.

Foto: Reprodução TV Vitória
Jobes, presidente da CTRA, auxilia colaborador durante o dia de trabalho

Nascido e criado na Comunidade de São Domingos, Marcos Célio Valetim, de 32 anos, trabalha na cooperativa como encarregado de campo. O profissional tenta deixar para trás um período que ele classifica como difícil. Segundo ele, antes do surgimento da CTRA, os moradores da comunidades sofriam preconceito e eram tratados como invisíveis. “Hoje a sensação é de dignidade. Muitos diziam que o quilombola era preguiçoso, desorganizado. Mostramos que não é verdade. Só precisávamos de uma chance para provar o nosso valor”, desabafa.

Na busca para manter o legado de resistência e luta, os cooperados de São Domingos fazem planos e encontram em empresas privadas o apoio necessário para continuar trilhando o caminho da transformação. A empresa Suzano, maior produtora global de celulose de eucalipto, que tem fábrica no Norte do Estado, criou o “Territórios Resilientes”. Por meio do programa, a cooperativa recebeu linhas de investimentos e, desde 2014, é considerada uma fornecedora da empresa

Em 2020, mais de 300 famílias remanescentes de quilombo foram beneficiadas pelos programas sociais da multinacional. Douglas Peixoto, coordenador de Desenvolvimento Social da Suzano, explica como os programas sociais articulados pela empresa fazem a diferença nas comunidades.

Foto: Reprodução TV Vitória
Douglas Peixoto é coordenador de Desenvolvimento Social da Suzano

“Atuamos no Espírito Santo com mais de 50 entidades, entre associações rurais, indígenas, quilombolas e cooperativas. Essas entidades se relacionam com a Suzano a partir do investimento social. O apoio dos programas prevê equipe própria dedicada e consultorias técnicas especializadas. Prevê também a cessão de áreas para uso produtivo pelas associações sem acesso à terra, fornecimento de insumos básicos para estruturação das atividades produtivas, suporte técnico e financeiro para captação de recursos e articulação regional junto a outros parceiros estratégicos.”, explica

Além da busca ativa nas comunidades diretamente impactadas, a companhia tem como política o lançamento de editais nos municípios de atuação. Dessa forma, incentiva a comercialização e/ou atividades econômicas sustentáveis, o fomento ao empreendedorismo e a inclusão digital.

Preconceito 

A historiadora Ana Paula Rocha explica que o racismo estrutural que se caracteriza pela naturalização de ações, situações e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial, são desafios que precisam ser debatidos e resolvidos.

“O maior problema ainda é o racismo institucional. É o mesmo racismo que no passado negou direitos à população negra. É esse mesmo racismo que não considera o povo negro como produtor de vida, gerador de riquezas econômicas e que nega tudo ao povo preto”, diz.

Confira no vídeo o que diz a historiadora sobre o racismo sofrido pelos quilombolas:

Personalidades quilombolas importantes no Espírito Santo

Negro Rugério: líder quilombola, nascido no município de Conceição da Barra. Fundou em Santana, o Quilombo do Morro, comunidade que reuniu cerca de 40 escravos fugitivos e se tornou um dos mais importantes centros produtores de farinha de mandioca do mundo, no final do século XIX.

Benedito Meia-Légua: líder negro, que lutou contra os escravocratas no século XIX e tornou-se lenda por sua força e coragem. Seu nome de batismo era Benedito Caravelas, nascido como escravizado no município de Villa Nova do Rio de Sam Matheus, hoje simplesmente São Matheus, no Espírito Santo, em 1805

Foto: Folha Vitória
Zacimba Gaba: princesa escravizada no Espírito Santo

Zacimba Gaba: Princesa guerreira do reino de Cabinda, em Angola, na África. Ela nasceu no século XVII e comandou seu povo numa guerra contra a invasão portuguesa na região costeira. Cabinda, na década de 1690, foi praticamente dizimada pelas tropas lusas e os sobreviventes capturados e mandados ao Brasil como escravizados. . Zacimba guiou seu povo pela fazenda, guerreando contra os capatazes, e fugiu, fundando um quilombo no Norte do Espírito Santo, hoje município de Itaúnas. Finalmente livre, o povo de Zacimba se tornou grande condutor de revoltas pela liberdade, e seu quilombo se tornou ponto de referência para escravos fugidos. A princesa passou o resto da vida guiando batalhas no porto de São Matheus, pela libertação dos negros que eram vendidos chegados de África, e a destruição dos navios negreiros.

Constância de Angola: a documentação existente sobre Constância de Angola, é que há registros no cartório do 1º Ofício de São Mateus, de uma escrava de nome Constância, “crioula de cor parda, solteira” que foi comprada pelo Coronel Matheus Gomes da Cunha, em 1880. Na região do Vale do Cricaré existiam alguns quilombos, um deles de Viriato Cancão de Fogo, entre Nova Venécia e São Mateus. Ao saber do que aconteceu com Constância, Viriato resolveu resgatá-la. No quilombo ela aprendeu capoeira e a lutar com facas. Se tornou uma das guerreiras mais importantes da região. Enfrentava forças do governo e capitães do mato para ajudar seu povo.