O principal leilão de infraestrutura do governo Bolsonaro, a licitação da Ferrovia Norte-Sul, marcada para acontecer no próximo dia 28 de março, se baseia em um edital viciado, com condições que privilegiam a VLI, empresa de logística da mineradora Vale. A afirmação é do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU).
“O edital dessa licitação, tal como está desenhada, favorece amplamente a empresa VLI e não acrescenta nada ao País”, afirmou ao jornal ‘O Estado de S. Paulo’ o procurador do MP, Júlio Marcelo de Oliveira, que ficou conhecido por sua atuação durante o processo que culminou nas chamadas “pedaladas fiscais” e levaram ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
O Brasil não concede uma ferrovia à iniciativa privada há 12 anos. O leilão dos 1.537 km de extensão da estrada de ferro que corta o eixo central do Brasil, ligando Porto Nacional (TO) a Estrela D’Oeste (SP), é prioridade na agenda do governo Bolsonaro, com lance mínimo de R$ 1,3 bilhão. Trata-se de um projeto defendido com mãos de ferro pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas. Nos últimos dias, Freitas declarou que o leilão da Norte-Sul está mantido. O lance mínimo para o leilão está previsto em R$ 1,35 bilhão e os investimentos obrigatórios no prazo de dois anos são de R$ 2,8 bilhões.
Para Oliveira, que em agosto do ano passado já havia criticado o edital, o governo fez vista grossa e manteve um texto que restringe a competição de outros interessados e favorece a empresa da Vale. Apesar de suas considerações, a área técnica do TCU, que também analisou a minuta do edital após o procurador, acabou não emitindo opinião sobre restrições de competição e aprovou o modelo.
Oliveira afirma que a maior vantagem da VLI está no chamado “direito de passagem”, uma regra que obriga a concessionária de ferrovia a deixar que outras empresas passem por seu trecho. A Vale sairia na frente porque, segundo o procurador, já possui a operação de um trecho de 720 km da própria Norte-Sul desde 2007, logo acima do trecho que será concedido. Além disso, é dona da única saída portuária dessa mesma ferrovia pelo norte do País, caminho que passa pela Estrada de Ferro Carajás, chegando ao Porto de Barcarena, no Pará. Na prática, a Vale seria a única dona de toda a malha central do País que corta o centro de seu maior polo de produção de minério de ferro, as minas de Carajás.
A VLI é controlada pela Vale, em sociedade com as empresas Mitsui e Brookfield, com participação do fundo FI-FGTS. O governo nega irregularidades no edital e a VLI declara que o processo tem ocorrido com toda a transparência (ler mais abaixo).
Monopólio
Na avaliação do MP de Contas, esse monopólio da Vale a fortalece na disputa, porque a regra do direito de passagem não foi acatada pelas empresas que já atuam no setor. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) impôs o direito de passagem de forma unilateral, mudando as regras dos contratos que já existem, o que poderia levar a questionamentos jurídicos. Na opinião do procurador, esse fato retira a atratividade da licitação, já que não seria garantido que a Vale deixaria locomotivas de outras empresas percorrerem o trecho que hoje administra.
A reportagem apurou que, só no ano passado, a cúpula dos Transportes do governo recebeu representantes da Vale, ou da VLI, 28 vezes para tratar de ferrovias. Na média, isso equivale a mais de duas reuniões por mês. No mesmo período, representantes do governo estiveram com executivos da empresa Rumo Logística em oito ocasiões. O ministro da Infraestrutura afirmou que atendeu as empresas que pediram audiência e que a iniciativa não é do Programa de Parceira de Investimentos PPI), órgão que coordenava até o governo passado.
O procurador critica ainda o fato de o edital não prever nenhum transporte de passageiros no trecho que cortará a região central do Brasil e que terá mais de 2.500 km de extensão.
VLI
Por meio de nota, a VLI informou que possui gestão própria, independente e conta com mais três acionistas além da Vale, as empresas Brookfield, Mitsui e FI-FGTS, e nenhum deles controla individualmente a companhia. Sobre o edital da Norte-Sul, declarou que se trata de um documento “público, transparente e aberto a todos os interessados em participar do processo de forma igualitária”.
A VLI declarou é subconcessionária responsável pelo tramo norte da FNS desde 2007 e este trecho da ferrovia “não possui qualquer vínculo ou subtrechos envolvendo o tramo central [que vai a leilão], tal como ocorre com todas as concessionárias que também se conectam ao tramo”.
Desde 2007, a VLI realizou transportes pontuais no trecho entre Anápolis e Porto Nacional, que será concedido, mas afirmou “trataram-se de duas prestações de serviço específicas para um usuário com planta produtiva em Anápolis e transportes pontuais de trilhos e locomotivas da própria VLI para tramo norte”.
A respeito do direito de passagem de outras empresas no trecho que será concedido, a empresa declarou que, ao contrário do que diz o MP de Contas, não há insegurança jurídica sobre este assunto. “O edital já estabelece o direito de passagem a ser executado pelo vencedor do leilão frente a todas atuais concessionárias.”
As atuais concessionárias de ferrovias se negaram a assinar termo aditivo que garantiria o direito de passagem. Por causa disso, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) decidiu impor, unilateralmente, essa regra nos atuais contratos, exigindo que as empresas deixem outras operações da futura concessionária passarem em suas malhas.
Em relação às 28 reuniões entre executivos da VLI e autoridades do governo ocorridas no ano passado, conforme apurou a reportagem, a VLI afirmou que “trata-se de uma prática corriqueira e transparente envolvendo um prestador de serviço público e representantes dos órgãos responsáveis por essa prestação de serviço” e que essas “interlocuções acontecem em ambientes formais e as agendas são previamente divulgadas e públicas”. Informações são do jornal O Estado de São Paulo