Nas alturas, dólar a R$ 6 e o "complô" da Faria Lima
O mercado financeiro não é uma figura tangível com vontades próprias e inclinações políticas. Na prática, o mercado somos todos nós
Artigo escrito por Marcel Lima, assessor financeiro e head de conteúdo Técnico do Ibef-ES
O ano é 1986 e os "fiscais do Sarney" estão nas ruas. Nada como multas e prisões para penalizar os "inescrupulosos comerciantes responsáveis pela hiperinflação".
O ano é 2024 e parece que estamos diante de mais um caso clássico de deturpação da relação causa e efeito. Afinal, se a venda de picolés aumenta no verão, por que vendê-los no inverno faria o calor chegar mais cedo?
Hoje aqueles "inescrupulosos comerciantes" parecem assumir a figura do chamado mercado financeiro, que, na visão dos "fiscais do Sarney", é o grande culpado pela alta dos juros, pela alta do dólar e pela inflação dos alimentos.
Mas, afinal, onde entra o famoso "mercado" nessa história toda?
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Para começar, o mercado financeiro não é uma figura tangível com vontades próprias e inclinações políticas. Na prática o mercado somos todos nós.
Você pagou com Pix hoje? Você é parte do mercado. Você pegou um empréstimo? Você é parte do mercado. Você resgatou algum recurso dos investimentos? Adivinhe... você é parte do mercado.
Vamos a um caso atual e bastante concreto. Em maio deste ano, a Caixa comunicou que o banco já estava atuando no limite da capacidade de financiamento para o setor imobiliário e precisou mudar as condições para novos financiamentos. A causa? Resgates da poupança por parte da população.
Como menos lastro em poupança para estruturar essas operações, o banco se viu obrigado a exigir maior valor de entrada. Nesse caso, o "perverso mercado" estaria intencionalmente inviabilizando a realização do genuíno sonho da casa própria por parte do povo brasileiro, em especial dos mais pobres? Não. O motivo é bem mais simples: só acabou o dinheiro mesmo.
O dinheiro acabou não por ação de um suposto mercado tangível e politizado, mas por iniciativa de pessoas como você (parte do mercado financeiro).
Os resultados extraídos no mercado são apenas a soma das ações de todos agentes e sua infraestrutura atua apenas na intermediação das operações. Não é diferente com o preço do dólar.
Diante de dúvidas sobre a capacidade do governo federal honrar seus compromissos financeiros, estrangeiros e brasileiros retiram parte do seu patrimônio do país, convertendo esse volume em dólar para operarem no exterior. Com mais busca por dólar, seu preço dispara e, com ele, o preço dos alimentos (cujos insumos são, em grande parte, importados).
Adicionalmente, a sinalização de mais gastos públicos (aumento da demanda) provoca uma expectativa de alta da inflação no futuro, forçando o aumento do juro pelo Banco Central como forma de manter os preços sob controle.
Então, afinal, quem tem sido o principal responsável pelo estresse generalizado dos ativos financeiros? Apesar dos "fiscais do Sarney" de 2024 dizerem o contrário, não parece razoável culpar um suposto "ser tangível" do qual a própria população faz parte. Culpar o mercado é culpar o povo.