*Artigo escrito por Teuller Pimenta, advogado, com foco na atuação na proteção do direito médico e no direito tributário, membro do Comitê Qualificado de Conteúdo de Empreendedorismo e Gestão do IBEF-ES e membro do IBEF Academy.
O início do ano de 2023 foi marcado por alguns debates envolvendo o uso do Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF), usualmente conhecido como cartão corporativo da Presidência da República.
Isso porque os gastos de verbas públicas praticadas pelo então presidente Jair Bolsonaro foram revelados e contrastados com a imagem pública de austeridade que ele buscava transmitir.
Não obstante a esse gatilho que retomou discussões, a verdade é que o cartão corporativo sempre figurou no epicentro de escândalos com seu uso e abuso, tangenciando o pensamento quanto à moralidade do servidor público que o detém.
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O cartão corporativo foi criado durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e aprovado pelo Ministério da Fazenda em 2002. Sua ideia era substituir o uso de cheques, proporcionando mais agilidade, praticidade, controle às relações econômicas e modernidade na gestão de recursos da administração pública federal.
Basicamente, o cartão é emitido em nome da Unidade Gestora, com a identificação do portador que será responsável pelo uso. Essa forma de pagamento que o governo utiliza funciona como um cartão de créditos com pouquíssimos limites e regras facilmente burláveis.
Por exemplo, o presidente pode utilizar o cartão em viagens para pagar hotéis pelo tempo necessário de sua permanência, mas não há limites ou critérios para quais tipos de hotéis podem ser escolhidos. E assim, usualmente, hotéis de luxo são escolhidos.
Há algumas legislações que regulamentam seu uso, em destaque o Decreto nº 5.355/05 e o Decreto 6.370/08, este editado justamente em decorrência dos primeiros sinais de mau uso do cartão.
Dito isso, recentemente, após o fim do mandato presidencial, como está previsto em lei, os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro foram disponibilizados pelo governo. E como não é errado, nem mesmo incomum, oposição e mídia foram averiguar o que constava como despesas presidenciais.
Dentre tantas, observou-se o gasto de R$ 8,6 mil em sorvetes, R$ 10,5 milhões em hotéis e R$ 362 mil em uma única padaria. Estava, pois, desenhado o cenário do escândalo.
Essa, porém, está longe de ser a primeira vez que o uso do cartão reacendeu o debate quanto ao uso irregular de cartões corporativos na administração pública federal.
Retornando à história do Brasil, em 2007, o então ministro do Esporte, Orlando Silva, usou o cartão corporativo para pagar uma tapioca, posteriormente justificando a conduta como um engano ao usar o cartão em Brasília, e não o seu pessoal. Logo devolveu o valor de R$ 8,30, referente ao gasto.
Em 2008, após uma série de fatos noticiados pela mídia demonstrando um aumento surpreendente dos gastos com os cartões corporativos, foi instalada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar a situação.
O imbróglio se agravou quando o senador Álvaro Dias divulgou, sem indicar a origem, a existência de um dossiê, na chefia da Casa Civil, com gastos da família do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e de políticos filiados ao PSDB, partido sabidamente da oposição.
O fato político se tornou tão relevante que gerou até pedido de exoneração da ministra de Estado, chefe da Casa Civil.
Não obstante, para manter a tradição nas terras tupiniquins, ninguém foi indiciado, e em 139 páginas de relatório, fora os anexos, não se reconheceu a existência de quaisquer irregularidades com o uso do cartão corporativo.
De imediato, os fatos narrados revelam que as linhas pouco nítidas do permitido e do não permitido, aliadas a uma prática secular de mesclar o público e o privado, alavancam a imoralidade política.
Embora poucos saibam, e menos ainda seja dito, no Brasil existe um Código de Ética dos servidores públicos, que vincula todos os que militam na administração pública direta e indireta, em vigor por meio do Decreto 1.171/94.
Ainda que seja complexo explicar ética e moral, é possível aqui resumir uma conduta virtuosa por aquilo que os romanos, há séculos, pregavam: “Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu”.
Exatamente nessa linha de raciocínio está disposto no art. II do código de ética acima citado, a orientação quanto ao agir ético, nos seguintes termos: “II – O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal.”
O conteúdo semântico do artigo demonstra, em outras palavras, que a dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele, já que refletirá o exercício da vocação do próprio poder estatal.
Todavia, não é assim que os representantes do povo, os servidores da nação, portam-se. Aqui, as leis são formuladas dando margem ampla de interpretação. O legislador ordinário, comumente, trabalha com a completa indeterminação do que possa constituir os alegados limites de atuação, o que, obviamente, gera margem para que autoridades políticas e administrativas venham a cometer os abusos financeiros, ou outros maiores em extensão e em imoralidade.
E é nesse discorrer que caminharam os recentes episódios do cartão corporativo “messiânico”.
Como carro que levanta poeira na estrada, que após poucos minutos esvaem-se os traços de sua passagem, nada dessa vez foi feito ou se fará.
Na época já mencionada da CPI dos cartões, chamou atenção uma fala do então presidente Lula: “Eu confesso a vocês que não tenho tempo a perder com CPI”. E segue-se até hoje sem tempo.
Tudo isso leva a rememorar como é atual a absurda advertência sarcástica de Rui Barbosa:
…ladrões são isso. Ladrões são os buracos da caixa. Tesoiro caixa é; e de caixa é o furar-se. Logo, de caixa é o Ter ladrões.
(…)
Ladrões? Entendei-me bem. Falo de ladrões em sentido técnico, da mesma sorte como qualquer obreiro de trabalhos hidráulicos vos falaria. Ladrões não são aí essa feia coisa, que andais a maliciar.
Os ladrões são uns furos na base da caixa ali de indústria, talvez abertos da ferrugem. Sua ação furtiva é contínua, e, se são muitos, não há mãos a medir na escapa.
A antiética e a imoralidade do servidor na Administração Pública encontra terreno adubado para se proliferar, pois os comportamentos de autoridades públicas estão longe de se basearem nesses princípios.
Conquanto se possa defender a carência de novas leis determinando limites e diretrizes para que os cartões corporativos deixem de ser janelas aos oportunistas, a existência ou inexistência de lei jamais deveria ser a metida para se conduzir de forma desvirtuosa.
Enquanto não se inverter a lógica do Estado como ente imprescindível na vida humana, condescenderemos com práticas governamentais que desprezam promessas, normas, diretrizes e até mesmo os mais básicos mandamentos éticos e morais.