Espaço Educação

Tia ou professora: qual vocativo escolher?

Entre “tia” ou “professora”, o importante é respeitar a escolha de cada educadora e entender que a construção de vínculos vai além disso

Larissa O'Hara com o livro "A escola tem futuro?". Foto: Acervo pessoal
Larissa O'Hara com o livro "A escola tem futuro?". Foto: Acervo pessoal

Recentemente, em um grupo de WhatsApp de mães, do qual eu também faço parte, presenciei uma discussão curiosa.

Algumas delas estavam inconformadas porque, no primeiro dia de aula, a professora da educação infantil pediu para não ser chamada de “tia”, mas sim de “professora”.

Leia também: A ilha, a aquarela e o papel transformador da escola

A conversa rapidamente tomou outra proporção. Algumas mães passaram a julgar a postura da professora como pouco afetuosa, especialmente porque ela também evitava contatos físicos mais próximos nesse primeiro momento.

Tudo isso foi debatido com base em uma única impressão: o primeiro dia de aula.

Como professora, a reflexão foi inevitável

Preferi me calar, mas, como professora, a reflexão foi inevitável. Um dos maiores desafios de nossa profissão é lidar com pais que, muitas vezes, acreditam saber mais sobre educação do que os próprios educadores. 

Curiosamente, ninguém sugere ao engenheiro como construir um prédio ou ao médico como realizar uma cirurgia, mas, quando se trata do trabalho docente, todos se sentem no direito de criticar e interferir.

Frequentemente nos julgam em todos os aspectos: da prática pedagógica à personalidade, passando pela idade, vestimenta e até o aspecto físico.

Vocativo de forma fundamentada

Esse episódio me instigou a retomar referências para tratar a questão do vocativo de forma fundamentada, mas acessível para este canal jornalístico. Afinal, palavras carregam significados históricos, ideológicos e emocionais.

Em Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar, Paulo Freire propõe uma análise crítica sobre o uso do termo “tia”.

Para ele, ensinar é uma profissão que exige especificidade, militância e técnica, enquanto o termo “tia” remete a uma relação de parentesco.

Freire argumenta que ser chamada de “tia” pode prejudicar a identidade profissional das professoras, diluindo a percepção do papel que desempenham.

Ele apresenta dois motivos principais para recusar esse vocativo:

  1. Evitar uma compreensão distorcida sobre a tarefa profissional da professora;
  2. Desocultar a carga ideológica de “falsa intimidade” embutida no termo, que pode reforçar estereótipos prejudiciais.

Reflexão sobre o impacto do termo “tia”

Freire ainda provoca uma reflexão sobre o impacto do termo “tia” em situações mais sérias, como greves. Ele questiona: “Quem já viu dez mil ‘tias’ fazendo greve, sacrificando seus ‘sobrinhos’?”

Segundo ele, “tia” enfraquece o discurso profissional, transformando as professoras em figuras românticas, quase submissas, que deveriam sempre colocar o afeto acima de suas reivindicações profissionais.

Uma visão diferente

Por outro lado, contrária a um discurso profissionalista, Nilda Alves, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em A escola tem futuro?, apresenta uma visão diferente.

Ela destaca que o termo “tia” surgiu na década de 1960, quando a urbanização levou a um aumento significativo no número de escolas.

Famílias pobres, muitas delas negras, começaram a acessar a educação formal e trouxeram consigo um vocabulário de respeito típico de suas comunidades.

O termo “tia”, nesse contexto, representava reverência. Era o mesmo título dado às lideranças femininas — a dona do terreiro, a curandeira, a cozinheira – figuras centrais e respeitadas nas comunidades.

Assim, segundo Nilda Alves, compreender o vocativo “tia” como um decréscimo à identidade profissional das professoras ignora a rica carga cultural e histórica que ele carrega.

Minha experiência como professora

Entre as duas perspectivas, confesso que não consigo escolher uma única posição, pois ambas apresentam argumentos plausíveis. Por isso, acabo permitindo que meus alunos me chamem da forma como se sentem mais à vontade. 

Não costumo corrigir os alunos que me chamam de “tia”, mesmo aqueles do ensino fundamental II.

É natural que, conforme envelheçam, percam o hábito de usar esse vocativo, mas, ainda assim, tenho e já tive muitos alunos do 9º ano que o mantêm.

Percebo também uma diferença entre os alunos da escola pública e da particular: os da escola pública tendem a preservar esse chamamento, o que reforça a perspectiva histórica levantada por Nilda Alves. Isso reflete um contexto cultural, social e racial que não pode ser ignorado.

Corrigir vocativo de início pode criar barreiras

Acredito que corrigir um vocativo logo de início pode criar barreiras na relação com os alunos. Prefiro aproveitar momentos oportunos para abordar a importância de nossa identidade profissional. 

Podemos esclarecer que nossa atuação tem uma natureza laboral, pela qual somos remunerados, e não se baseia em um vínculo de caráter familiar, ainda que o afeto seja uma parte importante da relação com os alunos.

Dessa maneira, é possível reforçar nossa identidade ao demonstrar seriedade e ao abordar essas questões de maneira sincera.

Ainda assim, respeito e compreendo as professoras que optam, desde o início, por estabelecer limites claros e pedir um tratamento que reflita sua visão pedagógica.

Por fim, é essencial lembrar que o afeto não está necessariamente atrelado ao vocativo ou à frequência de gestos físicos como abraços.

O verdadeiro afeto se revela nas sutilezas: na atenção dedicada ao corrigir um dever, na paciência ao ouvir o aluno e no olhar acolhedor nos momentos de dificuldade.

Diversidade docente

Muito se fala sobre a diversidade discente, mas e a diversidade docente? Há professores risonhos e outros mais sérios. Alguns são rígidos; outros, flexíveis.

Existem aqueles que compartilham suas histórias pessoais, enquanto outros preferem a discrição.

Essa pluralidade é valiosa, pois ensina às crianças e adolescentes que não há um único jeito de ser professor, assim como não há um único jeito de ser gente.

Em um cenário repleto de desafios para a docência, solicitar ser chamada de “professora” pode ser um ato de resistência e de reafirmação da identidade profissional – algo urgente em tempos de desvalorização da educação.

Importante é respeitar a escolha de cada educadora

Entre “tia” ou “professora”, o mais importante é respeitar a escolha de cada educadora e entender que a construção de vínculos vai muito além disso.

Uma simples pergunta, como “Posso te chamar de ‘tia’?”, já demonstra sensibilidade e abre caminho para um diálogo baseado no respeito.

Por fim, o que realmente fortalece a relação entre professores, alunos e suas famílias é a confiança.

Com ela, até o silêncio pode ensinar; sem ela, nenhum vocativo será suficiente para sustentar uma educação verdadeiramente transformadora.

Larissa O’Hara Colunista
Colunista
Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Possui especialização em Revisão de Texto e em Psicopedagogia.