
A obra Um Quarto Só Seu (A Room of One’s Own), escrita pela britânica Virginia Woolf em 1929, é um marco do pensamento feminista na literatura. Nesse ensaio, Woolf discute as dificuldades enfrentadas pelas mulheres que desejam escrever, criar e existir plenamente num mundo que historicamente lhes negou autonomia.
“Uma mulher, se quiser escrever literatura, precisa ter dinheiro e um quarto só seu”, afirma.
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O “quarto” simboliza um espaço de liberdade intelectual e física, e o “dinheiro”, a independência financeira: dois pilares fundamentais que, à época — e ainda hoje, de tantas formas —, foram negados às mulheres.
Maternidade: exemplo contemporâneo de silenciamento
O pensamento de Woolf nos leva a refletir sobre o quanto a criação feminina, seja artística, literária ou profissional, exige condições que frequentemente nos são retiradas em silêncio.
Dando um salto histórico e literário, chego à maternidade como um dos maiores exemplos contemporâneos desse silenciamento.
Li, certa vez, uma mulher sugerindo que deveríamos normalizar o registro da maternidade no currículo Lattes para que compreendam o “gap” – esse estrangeirismo, que me parece mais preciso do que sua possível tradução (“lacuna”) – em nossa trajetória profissional.
Dores que não cabem no Lattes ou Linkedin
E então pensei: não cabem no currículo Lattes todos os desafios que enfrentei na gravidez, todas as dores que senti no parto, todas as madrugadas em claro do puerpério – e dos anos que o seguem.
Tampouco existe espaço no Lattes – ou no LinkedIn – para registrar o cansaço crônico, as feridas no peito, as estrias, o corpo que já não é mais o mesmo.
Não há campo específico para descrever o esforço invisível nas trocas de fralda, na cama molhada de xixi às três da manhã, no telefonema interrompido por uma birra, na ida ao banheiro com crianças agarradas às nossas pernas.
Não há palavra-chave para a sobrecarga física, emocional e mental que enfrentamos tentando conciliar todas as demandas apresentadas.
Tampouco cabe no currículo a despersonalização que acompanha tantas mães: a mulher que era independente, dona do seu tempo, do seu corpo, da sua vontade, de repente se torna alguém cuja existência gira em torno de outro ser.
E, paradoxalmente, é nesse abandono de si que surge o amor mais avassalador que já se sentiu.
Não cabe nada disso, mas… deveria
Será que posso acrescentar ao meu currículo toda a resiliência que desenvolvi? Toda a capacidade de improviso, de negociação, de liderança afetiva?
Por que, quando pensamos na relação entre maternidade e mundo do trabalho, ainda parece recair sobre nós a conta: como conciliar filhos e carreira?
Nesse tempo que dedicamos a cuidar de uma nova vida, quantas oportunidades nos escaparam?
Quantos homens apresentaram projetos, foram promovidos ou indicados a cargos de chefia enquanto mulheres estavam de licença-maternidade ou reorganizando suas rotinas para dar conta de tudo?
Mulheres são discriminadas por terem filhos, por quererem ter filhos, por estarem grávidas. Mulheres com filhos – e não homens com filhos – sofrem esse preconceito. A mãe é vista como menos disponível, menos produtiva, menos centrada.
Existe um estereótipo cruel que associa a maternidade a uma profissional com memória afetada, olheiras, desatenção. E isso prejudica a trajetória das mães trabalhadoras.
Mas não subestimem as mães trabalhadoras
Há muita angústia no dilema entre vida materna e vida profissional. Pode-se dizer que esse conflito é quase universal para mulheres que sempre trabalharam.
Eu, por exemplo, assim que me tornei mãe, perdi completamente o desejo pelo trabalho. Em parte, era compreensível: o impulso de maternar se impôs com uma urgência tão avassaladora que ofuscou tudo o mais – inclusive o prazer pelo trabalho.
Eu me encontrei na maternidade, mas me perdi de mim mesma. Como alguém que sempre gostou de trabalhar podia não querer mais trabalhar?
Vínculo simbiótico entre mãe e filho vai se transformando
Com o tempo, o vínculo simbiótico entre mãe e filho vai se transformando. Mãe e filho deixam de ser um só e se percebem como dois. Foi nesse momento – de separação afetiva saudável – que o desejo pelo trabalho renasceu em mim.
E ele voltou mais forte, mais lúcido, mais determinado, porque agora eu sabia por quem eu trabalhava: pelos meus filhos, sim – mas, acima de tudo, por mim mesma, porque uma mulher feliz é, também, uma mãe feliz.
E então voltamos com tudo – mais completas, mais certas do que queremos, mais satisfeitas com o que fazemos. O tempo que temos é valorizado, ficamos melhores em organização de tarefas.
Maternidade nos torna mais produtivas
A maternidade nos torna mais produtivas e eficientes, com melhor gestão de tarefas e habilidades refinadas em negociação e escuta ativa.
Desenvolvemos inteligência emocional, empatia, tolerância ao estresse e, graças à chamada neuroplasticidade materna, nosso cérebro se reconfigura para responder a múltiplas demandas, encontrar soluções rápidas e ser criativa diante do caos.
Ser mãe também nos ensina a priorizar o que realmente importa. Muda a nossa perspectiva sobre a vida, sobre o trabalho e sobre o mundo.
A longo prazo, os filhos crescem – mas as competências que desenvolvemos permanecem conosco.
É por isso que afirmo: longe de ser um obstáculo, a maternidade pode ser uma enorme vantagem no mercado de trabalho.
Mães e líderes em potencial
Instituições inteligentes deveriam reconhecer nas mães líderes em potencial: mais resilientes, mais humanas, mais preparadas para os desafios do mundo contemporâneo.
Eu mesma, depois de me tornar mãe da forma mais brutal possível – sentindo dores inimagináveis que beiravam a sensação de morte em dois partos normais –, carrego hoje uma força feminina que não me abandona – ela pulsa em mim com tanta intensidade que transparece no olhar, na postura, na forma como sigo inteira.
E se Virginia Woolf defendia um quarto só seu, eu me atrevo a dizer que as mães também merecem esse quarto.
Mas com uma porta entreaberta – por onde entra a vida que geramos. Criamos literatura. Criamos gente. E, no processo, recriamos a nós mesmas.