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O preconceito linguístico disfarçado de elegância nas redes sociais

Figuras carismáticas conquistam milhões de seguidores sob o manto de uma oratória sofisticada e um humor ácido e inteligente, que esconde preconceito

Homem falando
Homem falando. Foto: Canva

É comum que figuras carismáticas e articuladas ganhem destaque ao abordar temas relacionados à língua portuguesa, conquistando milhões de seguidores nas redes sociais. Muitas vezes, essas personalidades são mencionadas em conversas com amigos e familiares, o que me coloca em uma posição desconfortável.

Afinal, suas abordagens não me representam, e explicar, em poucas palavras, os motivos dessa incompatibilidade pode ser um desafio. Enxergo aqui, portanto, a oportunidade de detalhar as razões pelas quais esse tipo de discurso me causa certa inquietação.

Sob o manto de uma oratória sofisticada, promovida como um “jeito chique de viver e se comunicar, aliado a um humor ácido e inteligente”, muitas vezes se esconde um discurso impregnado de preconceito linguístico.

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A elegância, quando usada para desqualificar o outro, não é uma virtude; ao contrário, torna-se um instrumento de exclusão. Utilizar o domínio da norma-padrão para menosprezar dialetos marginalizados reforça uma postura segregacionista e violenta.

Há quem defenda que certos discursos sejam apenas personagens criados para entreter. Mesmo que fosse o caso, o problema permanece.

Esse tipo de abordagem é abertamente antidemocrático e carrega uma série de preconceitos, refletindo uma caricatura do que há de mais nocivo na educação: arrogância e descompromisso acadêmico, que reforçam estereótipos excludentes.

Um pouco sobre sociolinguística

Oferecer dicas sobre o português padrão pode ser útil e contribuir para a disseminação do conhecimento da língua monitorada. O problema está na forma como esse conteúdo é apresentado.

Muitas pessoas desconhecem a sociolinguística e, por isso, acreditam que sua forma de falar seja um “português ruim”. Não percebem as diferenças entre oralidade e escrita, entre formalidade e informalidade ou entre fala espontânea e língua monitorada. 

Para a maioria dos brasileiros, as noções de dialeto ou de variedade linguística não são percebidas como algo concreto. O que existe, como valor cultural profundamente arraigado, é a noção de “erro gramatical” e o estigma de algumas pronúncias regionais.

A sociolinguística, campo que se consolidou nos anos 1960, estuda a língua em seu contexto social, considerando aspectos funcionais e interacionais.

Para exemplificar essa ideia, uma expressão simples como “Pronto!” pode assumir diferentes atos de fala, significando atender ao telefone, mandar uma criança parar de mexer em algo ou finalizar um trabalho.

A variabilidade linguística é um fenômeno inerente a qualquer língua natural, em qualquer comunidade linguística. A sociolinguística vê essa variabilidade como evidência sincrônica de mudanças linguísticas em andamento ou como reflexo de fatores socioeconômicos que afetam a língua.

Para o senso comum, no entanto, qualquer variedade que se afaste da morfossintaxe ou do léxico do português padrão é considerada “ruim” e “indesejável”, independentemente do contexto. Muitos veem a língua como um conjunto rígido de “regrinhas de português” e nada mais.

No entanto, a língua é, antes de tudo, uma instituição social. Falamos português porque fomos colonizados por Portugal. Nos dois primeiros séculos, conviviam a língua tupinambá e o português das elites administrativas e do clero, num bilinguismo instável.

Dando um salto histórico, foi apenas no final do século XX, em 1996, com a publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que a escola se universalizou e o perfil da população estudantil se diversificou.

Antes, a escola era espaço das elites; com a democratização, passou a acolher também alunos das classes trabalhadoras e de segmentos à margem do sistema de produção. Nesse processo, a escola passou a receber estudantes que falam, por exemplo, “nóis vai”, “abrido”, “cheguemu”, expressões típicas de suas comunidades e contextos sociais. 

Como explica Stela Maris, PhD em Linguística, na obra Nós cheguemu na escola, e agora?, recomenda-se que a norma culta seja ensinada nas escolas, mas que, ao mesmo tempo, sejam preservados os conhecimentos sociolinguísticos e os valores culturais que os alunos trazem de seu ambiente social. 

Aprender a norma culta deve significar uma ampliação da competência linguística e comunicativa do aluno, capacitando-o a usar uma variedade ou outra, conforme a situação discursiva.

Cada enunciado é um ato de identidade, que marca diversas dimensões sociais, como gênero, faixa etária, grupo religioso ou étnico. Considerar alguém inferior pela forma como fala tem nome: preconceito linguístico.

Os alunos devem se sentir à vontade para falar em sala de aula, independentemente da variedade linguística que utilizem. Quando seus antecedentes culturais e linguísticos não são respeitados, podem desenvolver um sentimento de insegurança e inadequação.

Por que esse conteúdo vende?

Mas o mais curioso é: por que tanta gente se interessa por conteúdos que reforçam o preconceito linguístico?

Paradoxalmente, grande parte do público que consome esse tipo de discurso pertence justamente às camadas sociais cujas formas de falar são mais criticadas. Parece haver um desejo de pertencimento, uma busca por validação através da adesão a padrões ditos “superiores”.

A questão é que essa postura pedante simplesmente não serve para nós, professores. Como poderíamos ensinar menosprezando, desautorizando e humilhando nossos próprios alunos? Não somos contrários às regras, nem defensores de um “vale-tudo” linguístico.

Na verdade, apreciamos ensinar as normas do português padrão e promover uma boa escrita. No entanto, isso é muito diferente de diminuir alguém por sua forma de se expressar.

Uma pedagogia sensível, inspirada na proposta de Frederick Erickson, apresenta um caminho possível: uma abordagem que respeita as diferenças sociolinguísticas e culturais dos alunos. A escola deve atuar como facilitadora na aquisição de estilos linguísticos que complementem o vernáculo.

Humildade x vaidade

Humildade é uma virtude muitas vezes confundida com baixa autoestima, enquanto a arrogância é equivocadamente interpretada como autoconfiança.

Como observa André Comte-Sponville, em Pequeno tratado das grandes virtudes, “a humildade não é uma depreciação de si […] não é ignorância do que somos, mas, ao contrário, conhecimento, ou reconhecimento, de tudo o que não somos”.

Quando se mistura vaidade com ensino, o resultado é sempre desastroso. Infelizmente, há quem ensine português desconsiderando décadas de estudos acadêmicos, ignorando a história e as desigualdades brasileiras. “A vaidade é, definitivamente, meu pecado predileto!”, diz a personagem de Al Pacino, no filme Advogado do Diabo.

Entendo o fascínio que muitos sentem por quem domina as regras da norma culta. Mas usar esse conhecimento para segregar e reforçar diferenças de classe é, sem dúvida, um dos usos mais nocivos da língua. Humilhar outra pessoa por sua forma de falar, não apenas silencia uma voz, mas também perpetua um ciclo de opressão.

Larissa O’Hara Colunista
Colunista
Graduada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), professora efetiva do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes).