Entrevista de Domingo

Francisco Carlos Gava: "O Terceiro Setor é essencial para a economia"

Para Francisco Carlos Gava, "carimbo" de verbas dificulta operacionalização de entidades do Terceiro Setor. Crédito: Reprodução de TV
Para Francisco Carlos Gava, "carimbo" de verbas dificulta operacionalização de entidades do Terceiro Setor. Crédito: Reprodução de TV

O Terceiro Setor, que são as entidades privadas sem fins lucrativos que atuam na sociedade civil, são mais importantes para a economia do que se imagina. Segundo a Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (Fipe), o segmento teve participação de 4,27% do PIB do Brasil em 2022. E isso dá cerca de R$ 479 bilhões. Só para a gente ter ideia, o setor de fabricação de automóveis e caminhões movimentou 1,73% do PIB. 

No Espírito Santo os números não são muito diferentes. Segundo dados do Instituto Jones dos Santos Neves, em torno de 5% da geração de riqueza do Estado vem do Terceiro Setor. E quando falamos de empregabilidade a importância ganha ainda mais destaque. O Terceiro Setor emprega quase 12% da mão de obra.

O Francisco Carlos Gava conhece bem esses números e da importância do Terceiro Setor. ele é diretor-presidente da Acacci, Associação Capixaba Contra o Câncer Infantil. A entidade é referência de atuação do segmento no Estado. Tanto que está há 37 anos no mercado e criou uma marca de lisura e confiabilidade.

Gava, como é conhecido, foi reconhecido como líder do ano no segmento Terceiro Setor, no Prêmio Líder Empresarial 2024. O trabalho à frente da Acacci é voluntário. Só no ano passado hospedou 1.189 pessoas e atendeu quase 400 crianças com câncer. Ele é aposentado da ArcelorMittal.

Veja abaixo a entrevista com Francisco Carlos Gava: 

Como as entidades do Terceiro Setor são importantes para o Estado do ponto de vista de geração de riqueza?

O Terceiro Setor existe porque, infelizmente, o  primeiro setor (administração pública) não cumpre o seu papel constitucional. Essas instituições vêm para fazer aquilo que é responsabilidade do governo em todos os níveis: federal, estadual e municipal. 

Por exemplo, a política dos idosos determina que a responsabilidade por cuidar do idoso em situação de risco é do município, e a saúde é do Estado.

Então, como o Terceiro Setor contribui sobre o aspecto econômico e financeiro? São essas instituições que geram emprego, atendem pessoas, compram insumos e, às vezes, vendem produtos, como em bazares, para gerar receitas. Além disso, algumas entidades precisam de recursos públicos, como emendas parlamentares, o que também faz o dinheiro circular na cadeia produtiva. 

Portanto, o Terceiro Setor é essencial para a economia, pois gera empregos, movimenta recursos e proporciona dignidade para pessoas que não conseguem ser atendidas pelo poder público.

O ES vive um momento único de desenvolvimento, geração de riqueza, e prosperidade. Como você vê o desenvolvimento do Terceiro Setor no Estado nesse cenário?

Eu diria que esse boom da economia, infelizmente, ainda não chegou ao Terceiro Setor. O que vemos são instituições que precisam constantemente buscar recursos para realizar seu trabalho. No entanto, algumas empresas começam a despertar para a importância da responsabilidade social dentro do seu ESG e começam a apoiar projetos e instituições.

Por outro lado, há um problema muito ruim no terceiro setor, que felizmente não ocorre no Espírito Santo, que é o mau uso dos recursos destinados às instituições. Sempre vemos na imprensa manchetes sobre desvios de dinheiro. Mas, aqui no Estado, esse tipo de notícia é rara, o que é um ponto positivo.

No entanto, um desafio para o Terceiro Setor é a destinação de recursos “carimbados”. Se eu faço um projeto com uma grande empresa, o dinheiro só pode ser usado para aquele projeto específico. O mesmo acontece com verbas parlamentares. 

Por exemplo, se eu recebo um recurso para montar uma sala de fisioterapia, eu não posso usá-lo para pagar o fisioterapeuta, a conta de luz ou a água. Isso cria dificuldades na manutenção das atividades.

Considerando esse problema e o histórico de corrupção em algumas ONGs, é possível criar um sistema mais ágil e menos burocrático sem aumentar os riscos de desvios?

É um paradoxo. Mesmo com tantos controles, leis e regulamentos, os desvios continuam acontecendo. Se relaxamos os controles, os problemas aumentam. Eu trabalhei muitos anos com auditoria, controles internos e gestão de risco, e sei que sem controle, a situação pode desandar rapidamente.

As instituições sérias acabam penalizadas por essa burocracia excessiva. É um problema que precisa ser discutido para encontrarmos um meio-termo: menos burocracia sem comprometer a transparência e o controle dos recursos.

Hoje a Acacci tem mais de 50 empresas apoiadoras. Como é possível manter tantas parcerias?

Isso é fruto de 35 anos de trabalho e de reputação. A Acacci é uma instituição séria e a sociedade reconhece isso. Reputação é algo que se constroi ao longo de uma vida e se perde em segundos.

Nosso orçamento do ano passado mostrou que 94% das receitas da Acacci vieram de doações de pessoas físicas, enquanto apenas 6% vieram de projetos com empresas e repasses públicos. Evitamos depender de recursos governamentais, pois isso pode representar um risco para a instituição.

Temos diversas formas de captação de recursos, como o Selo Compromisso com a Criança, em que empresas contribuem financeiramente ou com doações de materiais e serviços. Temos parcerias com supermercados para o Troco Solidário, um bazar, uma loja virtual e um telemarketing interno. Mas o maior desafio é manter uma fonte de receita permanente.

O que uma empresa procura ao associar seu nome à Acacci?

Em primeiro lugar, ela quer estar associada a uma instituição séria e confiável. Também busca fortalecer sua marca junto a uma instituição respeitada pela sociedade e, claro, fazer a diferença na vida das pessoas.

Como é o dia a dia de manutenção e construção da marca da Acacci?

A Acacci tem 37 anos de história e sempre foi uma instituição transparente e correta no uso dos recursos. Nosso trabalho vai muito além do acolhimento de famílias. Atuamos para que o poder público cumpra com as políticas de saúde, como fizemos ao pressionar pela transferência do núcleo de onco-hematologia para um local mais adequado. E isso aconteceu. Saiu do Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória e hoje está no Hospital da Polícia Militar.

Temos também um projeto chamado Diagnóstico Precoce, em parceria com o Instituto Ronald McDonald, para capacitar profissionais de saúde e identificar sinais iniciais do câncer infantil. 

Além disso, trabalhamos com escolas por meio do projeto “Acaccinho com Você”, ensinando professores a identificar sinais da doença.

Nosso objetivo é continuar crescendo e impactando mais vidas, sempre mantendo a transparência e a responsabilidade que nos trouxeram até aqui.

No Espírito Santo, os negócios dependem de relacionamento. Como isso se aplica ao Terceiro Setor?

No Terceiro Setor isso é ainda mais sério. O nosso Estado é muito pequeno, aqui todo mundo conhece todo mundo. Esse relacionamento é fundamental para abrir portas. Por exemplo, o fulano que atua em uma casa ou em outra instituição pode ser vizinho de uma pessoa da empresa A, B ou C. Através dessa pessoa, conseguimos abrir portas. O relacionamento com o setor público também é essencial.

Uma instituição que não tem um bom relacionamento com os setores público e privado passa por mais dificuldades.

A Fundaes (Federação do Terceiro Setor do Espírito Santo) tem um programa, o Fundo de Investimento Capixaba, que ajuda a captar recursos e destina uma contrapartida para apoiar projetos de instituições menores que nem sempre estão regularizadas. 

Muitas dessas instituições não conseguem se regularizar sozinhas.

Como você vê a importância do profissionalismo na gestão de uma entidade do Terceiro Setor?

Esse é um grande desafio do Terceiro Setor, e estamos trabalhando para melhorar. A qualificação da mão de obra no terceiro setor é deficiente, pois não conseguimos competir com os salários e benefícios das empresas que visam lucro. Muitas vezes, a capacitação é um ponto fraco. 

A gestão também é um desafio, pois muitos membros da diretoria e conselhos são voluntários e podem não ter experiência em grandes empresas. Eu venho da iniciativa privada, onde recebi uma capacitação significativa. O que posso oferecer é minha experiência em gestão. Pessoas com essa formação deveriam se colocar a serviço das instituições do Terceiro Setor.

Você acha que o fato de ser voluntário pode ser interpretado como falta de compromisso?

Isso acontece sim. Estamos trabalhando no Planejamento Estratégico do Asilo dos Idosos, e um dos grandes desafios é a sucessão e formar sucessores com capacidade de gestão e conhecimento em governança. Muitas vezes, voluntários se dedicam apenas quando têm tempo, o que dificulta a gestão da instituição. 

No entanto, não podemos cobrar da mesma forma de todos. Cada um dá o que tem. Para muitas pessoas, a doação de dinheiro é suficiente, mas é importante também se doar fisicamente para a causa.

Você acha que o Terceiro Setor é um reflexo do que acontece nas empresas privadas?

Não diria que é um reflexo, mas é algo muito parecido. Ou seja, as empresas familiares, em muitos casos, não se preocupam com governança ou transparência. Porém, no Terceiro Setor, a governança é crucial. Muitas pessoas não sabem que, de acordo com as leis brasileiras, aqueles que ocupam cargos de direção ou conselhos em instituições do terceiro setor podem ser responsabilizados pessoalmente por desvios de recursos. 

Isso gera um certo receio, no entanto uma boa gestão e acompanhamento constante ajudam a mitigar esses riscos. Nesse sentido, o Terceiro Setor está começando a se estruturar, e precisamos melhorar nisso.

O ES tem um bom ambiente para o desenvolvimento de empresas do Terceiro Setor?

Sim, o Espírito Santo tem todas as condições para isso. Ou seja, o Estado tem uma economia estável e um bom ambiente de negócios, o que favorece não apenas as empresas do Segundo Setor, mas também as do Terceiro Setor. 

A transparência e o equilíbrio fiscal são pontos positivos. Nesse sentido, instituições do terceiro setor recebem apoio de empresas em cidades como Aracruz, Fundão e no Sul do Estado.

O ambiente de negócios é favorável para o crescimento do terceiro setor no estado.

Quais são as principais dificuldades do Terceiro Setor no Espírito Santo?

Primeiramente, muitas instituições do Terceiro Setor não conseguem captar recursos privados, mesmo havendo dinheiro disponível. Por exemplo, apenas 2% dos recursos que poderiam ser destinados a instituições do segmento, tanto de empresas quanto de pessoas físicas, são efetivamente destinados. O restante fica represado. Isso se deve à falta de informação e à falta de cultura de doação. Nesse sentido, trabalhamos com a Receita Federal e o Conselho de Contabilidade para melhorar isso. 

Outro problema é que quando empresas ou pessoas físicas doam para fundos como o da Infância e Adolescência, eles não podem indicar para qual projeto o recurso será destinado, o que dificulta a captação de recursos por parte das instituições. Porém, estamos tentando mudar isso. Nesse sentido, já existem municípios como Linhares e Ibiraçu que permitem essa chancela. Em outras palavras, isso ajudaria a aumentar a captação de recursos e faria uma grande diferença.

Por que essa falta de destinação de recursos via Imposto de Renda é um grande obstáculo?

Atualmente, só 2% dos recursos possíveis são destinados ao Terceiro Setor. Isso poderia mudar muita coisa, já que há muitos recursos disponíveis. Algumas instituições, mesmo pequenas, fazem um trabalho fantástico, especialmente nas periferias. Elas precisam desses recursos para continuar seus projetos e impactar positivamente as comunidades.

Francisco Carlos Gava é diretor-presidente da Acacci

Veja abaixo a entrevista na íntegra: