O velejador Bruno Fontes tinha chance de ir para os Jogos de Tóquio-2020 como atleta, mas além da forte concorrência de Robert Scheidt na classe Laser, ele recebeu uma ótima proposta da China e vai para a Olimpíada como técnico da seleção do país asiático. Aos 40 anos, o medalhista de prata no Pan de Lima conta em entrevista exclusiva ao Estado um pouco de sua rotina longe de casa e revela as preocupações do governo chinês com os atletas olímpicos por causa do surto de coronavírus.
Como está sendo o trabalho na seleção olímpica de vela da China?
Está sendo ótimo. Aqui na China eu tenho um reconhecimento incrível. São oito anos trabalhando com a China em períodos curtos e que agora estão se tornando mais longos. Em 2018 eles me convidaram para ser técnico deles na Olimpíada. Eu hesitei um pouco até o Pan-Americano e o Mundial do Japão, mas o reconhecimento, o desafio profissional e, com certeza, a parte financeira, me fizeram optar pela China e não tentar mais a carreira de atleta. Apesar de eu ter chances como atleta, tanto na parte física quanto técnica, preferi seguir o desafio da China.
Sobre seu trabalho na China, vê o país em condições de apresentar bons atletas na vela?
Com certeza. Não teria vindo para a China somente pelo dinheiro. Estamos formando bons atletas aqui e a menina que eu treino, que é o foco, foi medalha na Copa do Mundo de Miami, da Itália, ela é uma real candidata à medalha em vento médio e vento fraco. Se ventar muito forte ela perde um pouco do favoritismo por ser menor e mais leve.
Como é a estrutura de trabalho aí?
É incrível. Temos uma academia só para os atletas da vela, de primeiro mundo. Uma alimentação muito boa, com três refeições ao dia. Fisioterapeutas, médicos e uma equipe multidisciplinar. É só atravessar a rua e encontramos toda estrutura de vela, barcos, barco do técnico, e o local para velejar é muito bom. É uma estrutura única, que eu nunca vivi na minha vida, e se eu tivesse vivido isso, quem sabe poderia até ter tido resultados melhores já que nunca me senti tão bem fisicamente. Apesar de aposentado eu me mantenho ativo, subo no barco, mostro técnicas.
A gente ouve falar bastante sobre o coronavírus. Como tem sido essa questão aí para você?
Tem sido uma questão bem séria. Cada dia notícias piores vão aparecendo. Por causa de eu estar vivendo com pessoas tão importantes para o governo da China, medidas extremas foram tomadas apesar de estarmos longe de Wuhan. Não pode ir para a rua, só pode ir para água e velejar. Não podemos ter contato com outras pessoas, não pode ir ao supermercado ou nenhuma outra estrutura. Fora isso está tudo bem. Temos de seguir várias normas. O time nacional só pode andar por um lado da escada, os staffs ficam em outro lado do prédio. Estão tendo muito cuidado com quem vai para a Olimpíada, e eu sou um deles. Agora as informações estão chegando, mas sempre tem aquela desinformação, e o que falam por aqui é que será mais uma semana de confinamento restrito na China inteira para ver se começa a diminuir e aí eles liberam mais o confinamento.
Você ainda tinha chances de ir para Tóquio, se fizesse um resultado excelente no Mundial. Achou melhor encerrar seu lado competidor?
Encerrei a carreira visando a esse desafio, visando ao compromisso já que se tornar um técnico de uma das maiores nações do mundo é um compromisso muito grande e foi uma escolha bem difícil, mas vários fatores me trouxeram para cá. Estou muito contente com esse momento, sem remorso nenhum de ter encerrado até o momento esse sonho de mais uma Olimpíada. Quem sabe para próxima a gente volta!
Robert Scheidt parece incansável e vai para mais uma Olimpíada. Como foi sua relação com ele nesses anos todos?
O Robert sempre foi uma referência. Ele nunca pôde ser meu ídolo, pois quando você idolatra alguém, você idolatra e não quer vencer. Eu sempre tive ele como referência como demonstração de caráter, de profissionalismo, de posicionamento, do que fazer em certos momentos. Isso eu aprendi muito com ele com tantas derrotas que eu tive para ele. Acho que minha obstinação e as lições que tive com ele me levaram até onde cheguei na minha carreira. Ganhei medalhas em Copas do Mundo, tive conquistas nacionais e internacionais, representei o Brasil em Olimpíada, fui medalhista pan-americano e agora cheguei aqui na China. A gente sempre se respeitou muito, nunca fomos amigos próximos, de se telefonar, mas sempre tivemos uma amizade recíproca e verdadeira.
Acha que o Scheidt tem chance de ir ao pódio em Tóquio?
Eu acho que sim. Nunca duvide de um cara que ganhou tantos títulos mundiais, tantas medalhas olímpicas. A medalha que ele perdeu no Rio foi um detalhe, quem sabe não estaria tentando mais essa. Ele é um cara obstinado, com muita sede de vitória. Lógico que a questão da idade pesa um pouco, mas a experiência no nosso esporte conta muito. Se na semana do Japão não der ventos extremos, condições muito duras fisicamente, ele é um dos reais candidatos à medalha olímpica. É lógico que se ventar muito durante a Olimpíada inteira pode dificultar um pouco, mas nunca duvide de Robert Scheidt.
Como velejador você conquistou muitos títulos e medalhas. O que espera da sua carreira de técnico?
Minha carreira como técnico eu não espero nada mais do que fiz na minha carreira de atleta. Nunca fui um talento nato, mas sempre trabalhei duro. Aprendi na marra as coisas e valorizo muito o que aprendi. Sempre trabalhei o lado comercial da minha carreira como atleta, a parte técnica, a parte física. Posso dizer que sei um pouco de cada coisa, que estudo cada uma delas. Onde ponho a mão, tenho muita experiência e consigo mudar a vida das pessoas. A negociação com a China foi bem difícil, pois eu hesitei muito, mas eles foram atrás de mim de uma maneira que não queriam me perder. Comecei bem minha carreira como técnico classificando o Andrew Lewis, de Trinidad e Tobago, para o Rio e para o Pan, conquistando medalha de Copa do Mundo com a chinesa e agora o grande desafio é conquistar a medalha olímpica que ainda não tenho em minha carreira e pode me levar a outros patamares.