Rio –
Não é fácil colocar as palavras Sambódromo e silêncio na mesma frase. Mas é isso que os organizadores do tiro com arco propõem. Para diminuir o barulho na hora em que o arqueiro solta a flecha em direção ao alvo e à medalha, o Comitê Rio-2016 instalou uma parede acústica de madeira e espuma para diminuir a poluição sonora. O templo do samba vai ficar pianinho, mas verá Ane Marcelle dos Santos, uma ex-passista do Salgueiro, tentar a medalha no tiro com arco.
Os vizinhos do palco oficial do desfile das escolas do samba acharam a ideia esquisita. O técnico em edificações Luís Carlos Mattos interrompeu a faxina que fazia em sua casa, exatamente nos fundos do Sambódromo, para falar que o local é barulhento o ano todo. Ele já está acostumado a aumentar o volume da tevê pra lá do 70. O Sambódromo é um local de festa e barulho não só no Carnaval. Temos shows e vários eventos, contou o projetista. É difícil imaginar silêncio aí dentro, mas a gente dá um jeito de se acostumar.
Para ver o futebol, o morador da rua Senhor de Matosinhos também conta com um tipo de isolamento acústico. Como as casas são antigas, as paredes são grossas. Isso dá um alívio para o barulho da rua, disse, mostrando a espessura das paredes da fachada, que não pode ser reformada para conservar as lembranças arquitetônicas.
Os organizadores dos Jogos acreditam que a parede acústica reduziu os ruídos externos em 25%. Parece pouco diante do fuzuê causado por uma briga de trânsito em frente ao local de competição na tarde desta terça-feira. Um taxista estacionou sem sinalizar, o motorista de trás quase bateu e todos os palavrões puderam ser ouvidos pela equipe brasileira que tentava mirar o alvo, distante 70 metros. Para o técnico Evandro de Azevedo, o barulho não atrapalha. O atleta só vai se desconcentrar se houver uma explosão no momento exato, garantiu.
A instalação da parede acústica foi decidida no evento-teste. O Comitê Organizador não acredita que o barulho vindo das ruas tenha interferido na performance dos atletas e reiterou que o barulho não foi apontado como um problema. Como precaução, pediu os tapa-ouvidos da instalação. Mexer na dinâmica do trânsito da região, fechando ruas e avenidas, era a última opção.
Para os funcionários do Bar e Lanches Sabor do Nordeste, o batuque do samba faz um rico dueto com o barulhinho da caixa registradora. Quanto mais agitação, melhor. Dona Maria de Andrade se recorda do tempo em que vendia cerca de 300 pratos por dia. Segundo ela, a crise financeira fez o movimento cair pela metade. Nesta terça-feira, nem o perfume da costela com couve atraiu a freguesia. Hoje, o pessoal pede um prato para dividir para três, lamentou.
A atendente Mirna do Nascimento de Oliveira lembra que o forte da casa é o churrasco. A gente colabora com o silêncio, mas o pessoal podia colaborar e vir almoçar aqui, sorriu.
FRONTEIRA – A atleta Ane Marcelle dos Santos está na fronteira entre estes dois mundos, o do samba e o esporte olímpico. Neta de Hélio Gomes, sambista da Velha Guarda do Salgueiro, ela foi passista da escola até os 16 anos. Seu sonho era ser rainha de bateria. Aos 17, em um estalo, trocou o salto alto pelo arco e flecha. Ela se encantou pelo esporte praticado pelo irmão em um projeto social no Morro da Casa Branca, na Tijuca.
Depois de ter mudado de endereço algumas vezes para fugir da violência, recentemente ela conseguiu comprar uma casa para os pais. Embora conheça o Sambódromo de outros carnavais – literalmente -, seu foco agora é a medalha. Neste domingo, ela começa a missão.
Azevedo afirma que Ane tem um talento difícil de ser encontrado. A aposta, no entanto, é para o futuro. As provas individuais deste ano têm atletas de alto nível; na equipe, as chances sobem um pouco. Ela é uma pedra a ser lapidada. Ainda está em uma fase de transição, de pessoa normal para atleta. Ela só precisa de mais anos vivendo uma vida de atleta, disse o treinador.
Ane garantiu seu melhor resultado na segunda etapa da Copa do Mundo, na Colômbia. Foi a quarta colocação, nas duplas mistas, ao lado de Marcus Vinícius DAlmeida, a principal esperança de medalha da equipe brasileira. Na classificação geral, terminou na nona posição, resultado considerado muito bom. Sua meta é ficar até entre as oito primeiras ou mesmo entre as cinco no individual.
Aquela história da transição, da fronteira entre o samba e o esporte, ainda está na maneira como Ane se comporta. Desacostumada aos flashes, ela ficou sem graça e mostrou um sorriso tímido ao posar rapidamente para o jornal O Estado de S.Paulo, entre uma flechada e outra.