Uma recente reclamação do presidente Jair Bolsonaro, que de não poderia ir ao estádio do Santos, time de São Paulo, por ausência da vacina, aumentou as polêmicas sobre a obrigatoriedade da vacina contra a COVID. Diversos estados, municípios e entidades estão restringindo o ingresso de pessoas não vacinadas em eventos e locais.
– Até onde isto é admissível no nosso ordenamento jurídico?
O direito de locomoção é garantido na Constituição Federal, não existindo, na Carta Maior, nada que impeça as pessoas de entrarem em locais públicos. Esse direito, contudo, não é absoluto e pode ser alvo de excepcionalidades a depender da situação concreta.
Há um projeto de lei em andamento no Congresso Nacional, já aprovado pelo Senado, que institui o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária (CSS), uma espécie de “passaporte sanitário” ou “passaporte da vacina” que, na prática, permitirá a circulação exclusivamente de pessoas imunizadas ou que testaram negativo para Covid-19 ou outras doenças infectocontagiosas em ambientes públicos ou privados que implementem restrições de acesso durante a pandemia.
– É direito de uma pessoa recusar-se a tomar a vacina?
Sim. Uma pessoa pode, por motivos pessoais não revelados ou questões meramente ideológicas, se recusar a tomar a vacina da Covid-19.
Porém, cabe ressaltar que, pais e mães que optarem por não tomarem a vacina por motivos religiosos, não poderão estender essa decisão para os filhos caso sejam menores de idade. Há pouco tempo a Justiça de Minas Gerais decidiu que um casal estava obrigado a vacinar os filhos menores, sob pena de sanções, uma vez que, no entendimento daquele Tribunal, o dever de prezar pela saúde se estende à família e por isso, o legislador estabeleceu a obrigatoriedade da vacinação nos casos recomendados pelas autoridades. Quanto à alegação dos pais de que a escolha pela não imunização está ligada a questões religiosas, o relator ponderou que o interesse do menor se sobrepõe a qualquer posição particular dos pais.
– Se a pessoa tem o direito de não tomar vacina, restringir a presença dela em certos locais e eventos não seria ilegal?
A restrição das pessoas que não tomaram vacina em certos locais, na ótica do Direito, serviria de impulso/estimulo para que as mesmas tomem a vacina e cada vez mais o vírus seja afastado. Apesar do direito à liberdade de locomoção dentro do território nacional, havendo concorrência entre bens jurídicos tutelados, deve-se adotar uma solução que seja menos gravosa e que busque a maior realização dos direitos envolvidos (o direito à saúde da população se sobrepõem ao direito de ir e vir, na minha visão). Faz-se importante ressaltar que a saúde é um direito social, expressamente resguardado pela Constituição em seus artigos 6º e 196.
– Esse tipo de imposição não violaria o direito constitucional da liberdade e privacidade da pessoa, além da própria dignidade humana?
Sim, haveria uma violação, mas por um motivo/interesse maior: a proteção da saúde e da vida da população. Como dito anteriormente, nenhum direito é absoluto e há a necessidade de utilizar o princípio da proporcionalidade em tais situações. O direito à saúde, e, consequentemente, o direito à vida, mostram-se mais relevantes diante do contexto da pandemia do coronavírus, em relação aos direitos da liberdade e privacidade da pessoa. Assim, faz-se importante frisar que dentre os direitos fundamentais previstos na Carta Magna, o direito à vida (o qual torna-se inexistente sem a garantia do direito à saúde) destaca-se como o mais valioso, uma vez que a conservação da vida humana precede o próprio Estado Democrático de Direito, sendo a base de todo o ordenamento jurídico, condição básica para o exercício de todos os direitos fundamentais, pois sem ela não há personalidade, e sem esta não há como se cogitar o direito individual.
– Qual a amplitude do direito constitucional à saúde?
O art. 196 da Constituição Federal de 1988 define claramente que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Sendo assim, é interessante salientar que o dever do Estado brasileiro é garantir a efetividade do direito à saúde dos seus cidadãos por meio das políticas públicas sociais e econômicas. Em outros dizeres, é de obrigação do Brasil efetivar, concretizar o direito à saúde dos cidadãos, entendido este como acesso universal ao tratamento médico, remédios, consultas, as ações preventivas de saúde pública e todo complexo de ações e serviços de saúde. Nesse sentido, é válido destacar que as políticas públicas sociais e econômicas possuem como objetivo à redução de risco de doença, visando a proteção do direito à vida e à saúde, garantidos pela Constituição, já que, o direito à saúde e o direito à vida se sobrepõem sobre os direitos já mencionados.
– Até que ponto o interesse público pode se intrometer na vida privada?
O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado é um princípio implícito, que tem suas aplicações explicitamente previstas em norma jurídica. A prevalência dos interesses da coletividade sobre os interesses dos particulares é pressuposto lógico de qualquer ordem social estável e justifica a existência de diversas prerrogativas em favor da Administração Pública, tais como a presunção de legitimidade e a imperatividade dos atos administrativos, os prazos processuais e prescricionais diferenciados, o poder de autotutela, a natureza unilateral da atividade estatal, entre outras. A essência desse princípio está na própria razão de existir da Administração, ou seja, a Administração atua voltada aos interesses da coletividade.
Dessa forma, o princípio serve para inspirar o legislador, que deve considerar a predominância do interesse público sobre o privado na hora de editar normas de caráter geral e abstrato. Assim, em uma situação de conflito entre interesse de um particular e o interesse público, este último deve predominar.
Sérgio Carlos de Souza, fundador e sócio de Carlos de Souza Advogados, autor dos livros “101 Respostas Sobre Direito Ambiental” e “Guia Jurídico de Marketing Multinível”, especializado em Direito Empresarial, Recuperação de Empresas e Ambiental.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil