Por Gabriela Cuzzuol e Satina Pimenta
Até que ponto tudo passa pela política?
É um fato que o debate político sempre esteve presente no cotidiano dos brasileiros. Mesmo nos períodos de vigência de governos autoritários, em que eram impostas restrições às manifestações de opinião – inclusive política –, os cidadãos nunca deixaram de discuti-la – ainda que discretamente. “Somos animais políticos”, coloca Aristóteles em toda a sua obra.
Atualmente vivemos uma época de extrema polarização e quando falamos de extremidade não estamos brincando. Militantes à esquerda e a direita vêm se apresentando cada vez mais intolerantes quanto ao discurso que lhes são contrários.
É interessante pontuarmos sobre este extremismo, pois na história política brasileira a tradição era de debates acalorados, porém pacíficos, um cenário totalmente contrário, em relação ao atualmente visto. Um exemplo disso, foi a situação vivenciada em setembro 2020, quando jornalistas do Estadão foram agredidos com chutes, murros e pontapés, enquanto, cobriam uma manifestação de rua, em São Paulo.
O que mudou nos últimos anos foi a proporção que o debate político alcançou no cotidiano do brasileiro. Desde a redemocratização, a narrativa predominante era unilateral. Após um longo e traumático período ditatoriais e uma certa “timidez” de representantes da direita, no pós-redemocratização, a partir de 2014, representantes desses campos voltaram a se manifestar.
Depois de treze anos de governo orientado à esquerda, potencializado por uma série de crises e, ecoado pelas redes sociais, o debate sobre política tornou-se mais plural, diverso.
Inclusive em 2018, em um artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, o articulista Reinaldo Azevedo afirmou que: “o brasileiro não sabia a escalação da seleção de futebol, porém, sabia os nomes de cada um dos ministros do Supremo Tribunal Federal”. Tal envolvimento das pessoas comuns em política é democrático e republicano: se discutimos, podemos cobrar
melhorias. Países com democracias consolidadas têm a plena liberdade de expressão – e de imprensa – como um de seus pilares mais sagrados. Onde há democracia, há debate livre, a política está “na boca do povo”.
Todavia diante de tal extremismo, aparentemente, cada vez mais pessoas acreditam que nos posicionemos quanto a um lado “da moeda”: o apoio ao Presidente da República, Jair Bolsonaro (PL) ou ao ex-Presidente Lula (PT), ambos representantes dos extremos opostos.
A politização excessiva leva a uma cobrança pelo posicionamento de quaisquer pessoas. No que se refere às figuras públicas, agrava-se ainda mais. Um exemplo recente envolveu a cantora baiana Ivete Sangalo. No dia 29 de dezembro de 2021, ao realizar um show em Natal, no Rio Grande do Norte, a artista incentivou um grupo de fãs que entoavam um coro ofensivo
contra o presidente Jair Bolsonaro. Influenciadora potente devido a sua carreira de mais de duas décadas, em que conquistou milhares de fãs, Sangalo notoriamente, não tem tradição do envolvimento em polêmicas.
Tanto por isso quanto por sua óbvia notoriedade, o comportamento da cantora tenha repercutido nas redes sociais durante vários dias. De um lado, apoiadores, defendiam o direito dela de se posicionar politicamente – no caso, de forma clara, contra o atual governo. Por outro, há um grupo que defendia o posicionamento da mesma, porém, que o classificava como tardio e reagiram com: “enfim se posicionou”, “antes tarde do que nunca” entre outros.
Alguns afirmaram que a mesma sempre demonstrou-se contrária às posições de Bolsonaro, porém manifestava sua posição por meio de atitudes, como o incentivo à vacinação contra Covid-19; manifestação contra a liberação da venda de armas; além de se posicionar favoravelmente ao direito dos índios sobre as terras; liberdade de prática religiosa e afetiva entre outras pautas. Um grupo associava às manifestações da artista a um posicionamento
que consideravam orientado à esquerda.
Há duas questões fundamentais a serem discutidas: até que ponto a concordância com uma pauta específica posiciona alguém em um determinado campo política; o segundo é: assumir um posicionamento político é um direito ou uma obrigação?
O primeiro, deixaremos para um outro artigo. É sobre o segundo que vamos falar melhor aqui.
Nosso ordenamento Jurídico brasileiro, que tem como base a Constituição Federal de 1988, garante o direito à liberdade de expressão. Em seu artigo 5º, inciso IV, a Carta Magna indica que “é livre a manifestação de pensamento, sendo vedado o anonimato” e reforçado pelo artigo 220 que versa sobre a manifestação destes pensamentos e veda qualquer censura de
natureza política sobre ele.
Assim sendo, todos nós temos direito de defendermos nossas ideologias políticas e partidárias, independente do quão isso possa desagradar outras pessoas. Mas, isto significa que precisamos “sair por aí gritando que somos alinhados à esquerda ou direita”?
É obvio que a Carta Magna não impõe nada assim. Pelo contrário, resguarda quem não tem interesse algum em manifestar seu votos, quando nos incisos IV e VI do referido artigo da CF 1988 esclarece que o voto é secreto. Então se o voto é secreto a minha liberdade de expressão política encontra-se resguardada e diz respeito a mim utilizar desta liberdade ou não.
No que se refere a artistas, a alegada justificativa para o envolvimento pode ser encontrado na própria história da Arte, afinal elas sempre caminharam juntas, em relação de maior liberdade, dependência ou conveniência. Um exemplo é que obras de arte de diferentes períodos, registraram – as relações e modificações sociais – que, indiscutivelmente, passam pela política. Em contrapartida muitas das modificações políticas foram fortemente influenciadas pela arte. As Revoluções Francesa e Inglesa formam influenciadas principalmente pelos ideais iluministas, que se originaram a partir do Renascimento científico, cultural e artístico.
Já no Brasil, tal relação foi claramente vista, na década de 1960, com a efervescência da Tropicália e sua expansão gerando e incentivando- mesmo com a censura- em protesto contra a ditadura militar.
Portanto, a exigência de manifestação política dos cidadãos, principalmente, artistas e formadores de opinião – os atuais influenciadores, nos diferentes meios – seria algo implícito. Como se a manifestação política estivesse relacionada ao cidadão exercer cidadania. É nisso que se fundamenta a suposta obrigação de os artistas se posicionarem – e o suposto direito de
“cobrar” que o outro se posicione.
No livro Arte e Política: algumas possibilidades de leitura, a historiadora Annateresa Fabris afirma que: “O artista se comporta de diversas maneiras diante do poder político… Pode, mesmo não fazendo política, fazer justamente a política que o poder espera dele: aceitar e perpetuar o sistema. Pode escolher a militância do engajamento e da revolução.”
Mas, e se o sujeito decidir não manifesta-se sobre sua posição política? Aquilo
o transforma em um cidadão alienado?
Não necessariamente. Para Thomas Marshall, o conceito de cidadania está associado ao status que o cidadão possui em uma sociedade. Ao fato de poder exercer seus direitos civis, sociais e políticos de forma plena.
No entanto, mesmo quando especifica de que tratam direitos políticos, ele não afirma que o exercício da cidadania necessita que alguém manifeste claramente apoio ao grupo ideológico, partidário ou mesmo a um candidato.
Assim, embora possa fazê-lo, não é obrigado. Inclusive, porque há diversas formas de ativismo social que não incluam manifestação de predileção política.
Uma outra atriz bastante popular, pensa que não há a necessidade de se posicionar sobre política de forma clara. Há alguns meses, a atriz Juliana Paes, protagonizou uma polêmica semelhante a que Sangalo enfrenta. Criticada por uma colega por não militar publicamente
por vacinação, ela gravou um vídeo em que afirmou ter sido ofendida por uma colega de cena. Partindo do entendimento de que ela teria a obrigação de se posicionar em prol da vacinação, a colega – supostamente, a atriz Samantha Schmutz, teria telefonado para ela no meio da noite, chamando-a de adjetivos como “covarde, criminosa e desonesta”. Juliana, então, gravou um vídeo em que declarava não se sentir representada por ninguém e que, não pretendia
militar, já que, como milhares de brasileiros “se encontrava no lugar de desemparo” político.
O vídeo repercutiu durante mais de 10 dias. Para entusiastas da direita, ela foi criticada por declarar “não apoiar ideais arrogantes da extrema direita”; o lado oposto, em que militam grande parte de seus colegas de profissão, a criticou pela afirmação de “não apoiar delírios comunistas da extrema esquerda”.
Depois da polêmica, que gerou repercussão durantes mais de 10 dias, Paes não permaneceu no debate político. Pelo contrário. Decidiu aprender. Inscreveu-se em um curso livre, ministrado por uma economista que atua no mercado de capitais, famosa no meio liberal.
Sangalo, por sua vez, continua se manifestando de forma contrária à gestão Jair Bolsonaro. Ambas atrizes exercem direitos legítimos. Ambas têm envolvimento de anos em projetos sociais. Isso, por si só, é forma de exercer plenamente a cidadania, ainda que ambas escolhessem não mais lidar com a avalanche de reações emocionais que esse tipo de discussão gera.
O debate político não opera exclusivamente no campo da racionalidade. O professor de psicologia Robert Cialdini, da Universidade Federal do Arizona, aborda, em sua obra, que tomadas de decisões não são puramente racionais. A forma como interpretamos a realidade varia conforme nosso repertório emocional. Além disso, apresentamos – em maior ou menor grau – viés de confirmação, ou seja, uma tendência inconsciente de de buscar o que
corrobore nossas crenças anteriores, fundamentadas em nossas experiências de vida.
Essa é a razão pela qual Ivete perdeu milhares de seguidores entusiastas do Presidente Jair Bolsonaro – e, pode ter, por outro lado, ganhado outros, críticos à gestão. Da mesma forma que Paes possa ter afastado aqueles que consideraram que reprovavam o posicionamento dela.
Atualmente, posicionar-se politicamente, significa também segmentar o público. Pelo menos enquanto esses tempos estranham não arrefecem. Fato é que ninguém é “menos” cidadão se escolher não se envolver em polêmicas custosas, relacionadas a uma área que não domina em
profundidade.
A manifestação política de Sangalo e Paes não se deu no ambiente de criação artística e sim, em esfera pessoal, o que é um pleno direito, embora não constitua obrigação. Há diversas formas de manifestar espírito cívico, ainda que resguardado pela sutileza do silêncio.
Gabriela Cuzzuol é comentarista de política da Rede Vitória. Debate temas da política nacional e local no quadro Visão Política, na Jovem Pan News Espírito Santo, (90,5 fm), às terças e quintas, às 11h30.
Instagram: @editoragabi.
Satina Pimenta é advogada, psicóloga, professora e coordenadora universitária, mestre em Gestão e idealizadora do Projeto Ressignificando.
Instagram: @satinapm.psi