Em grande parte das cidades brasileiras, as crianças cujas famílias não têm condições de dar a elas o acesso à escola em tempo integral acabam dependendo de políticas públicas para o seu desenvolvimento social e pessoal.
Essa, por exemplo, era a realidade de famílias moradoras do bairro Inhanguetá, na região da Grande Santo Antônio, em Vitória, há até pouco tempo.
Sem a oportunidade de estudar em uma escola cujas atividades se estendessem ao longo do dia, a maioria dos estudantes da rede pública de ensino da região tinha a rua como segunda opção, no momento em que não estava estudando.
Conforme o líder comunitário de Inhanguetá, Luiz Siqueira, esse foi, por muitos anos, o retrato do bairro em que mora há mais de 50 anos.
“Não tem como negar que o acesso à educação e a políticas de inclusão social é o único caminho para dar a nossas crianças e adolescentes alguma perspectiva de futuro. Em todos esses anos aqui no bairro, vi muitas crianças e jovens sendo levados para a criminalidade porque não contavam com total acesso à educação, a um ensino de tempo integral, por exemplo”, afirmou.
Emocionado, Luiz conta que sentiu na pele os danos causados pela falta de ações visando dar às crianças de seu bairro uma alternativa à ociosidade e ao caminho do que ele chamou de “marginalidade”.
“Vi muito adolescente, ou até mesmo crianças, não tendo sequer a chance de chegar à maior idade, uma vez que optou, sem outra alternativa, por seguir o caminho do crime, especialmente no que se refere ao tráfico de drogas. Presenciei casos assim na minha família”, destacou.
Nova escola muda realidade de crianças da região
A fala do líder comunitário tem um quê de retrospecto, de algo que, embora ainda deixe vestígios e marcas em cada um dos moradores do bairro, faz parte do passado da comunidade chamada por ele de “carente de tudo”.
Isso porque, este ano, a Prefeitura de Vitória entregou à comunidade sua primeira escola em tempo integral.
Após uma espera de cerca de 15 anos, prefeitura inaugurou a Escola Municipal de Ensino Fundamental em Tempo Integral (Emef TI) Paulo Reglus Neves Freire.
A reforma e ampliação da escola, que estava fechada, teve investimentos de R$ 6 milhões. O local tem capacidade para atender a mais de 400 estudantes da região.
Para Luiz, a ação do executivo municipal possibilita aos pais e mães do bairro a oportunidade de dar aos seus filhos o pleno acesso à educação, bem como a programas de desenvolvimento e inclusão social.
Estudantes miram o futuro
Inicialmente tímida, a estudante Rebeca Siqueira Gomes, de 15 anos, aluna do 6º ano do ensino fundamental, destaca a preocupação que, segundo ela, os professores de sua nova escola têm com o bem-estar dos estudantes.
“O que me ajuda no dia a dia são os professores. Eles sempre percebem quando as pessoas (estudantes) estão mal ou com algum tipo de dúvida. O ensino integral é bom é porque aprendemos mais coisas no período em que estamos na escola”, disse.
Já mais solta, Rebeca sinaliza o gosto pela música e se mostra feliz em ter acesso a esse tipo de disciplina na Emef TI Paulo Reglus Neves Freire.
“A gente aprende músicas novas, que nunca tínhamos tocado, cifras, notas musicais. Aprendo cada vez mais”.
A estudante do terceiro ano do ensino fundamental Isabelly Castilho Nunes, de 8 anos, fala com entusiasmo de tudo que tem aprendido na nova escola.
Ela gosta de desenhar e é frequentadora do “Clube de Moda”, uma das disciplinas eletivas ofertadas na escola.
“O meu clube é de moda, aí a gente fica fazendo manequins e roupas. Gosto de brincar e de desenhar”, afirmou a pequena estilista.
No entanto, entre sonhos e encantamentos, a jovem estudante abre espaço para lembrar as condições precárias de sua antiga escola e lista, em sequência, uma verdadeira “fauna” de animais que entravam no local, por conta de sua estrutura, especialmente em dias chuvosos.
“Era bem ruim porque entravam sapos, lacraias e outros bichos. Quando chovia, não dava para entrar na escola, tinha que pegar trator para tirar a areia. Aqui é muito bom porque, se chover, não entra bicho e nem fica sujo”, pontuou uma aliviada Isabelly.
Aulas de futebol a maquiagem
Com o intuito de conscientizar as crianças e adolescentes acerca da diversidade de escolhas que elas terão ao longo de suas jornadas, a escola de tempo integral em Inhanguetá oportuniza aos estudantes o acesso a atividades extracurriculares que vão de práticas esportivas, como futebol, a técnicas de maquiagem.
As aulas são abertas para todos os alunos que se interessem por uma das opções apresentadas.
Foi o que contou Luiz Vitor Monteiro, 15 anos, estudante do 9º ano do ensino fundamental. O adolescente frisa que, no início, ficou surpreso com gama de possibilidades apresentada pela instituição, diferente do que ocorria em sua antiga escola.
“Para mim foi uma surpresa, mas logo comecei a me adaptar. Aqui a gente tem o Clube de Esporte, em que jogamos bola, por exemplo. Até aula de maquiagem tem. Durante esse período na escola aprendi muita coisa e me sinto melhor“, destacou o adolescente.
O porteiro Everto de Moraes Caetano, pai de um dos alunos da escola, afirmou ser perceptível a mudança no comportamento do filho após sua entrada na modalidade de ensino integral.
“Meu filho está mais participativo com as coisas da escola. Ele faz aula de violão. A escola está oferecendo a eles (alunos) opções que não os farão se arrepender no futuro”, ressaltou.
“Comunidade nem acreditava mais”, diz secretária
A secretária municipal de Educação, Juliana Rohsner, elencou que, até a efetiva entrega da escola, os moradores da comunidade já não acreditavam mais, devido à longa espera de 15 anos que ela fosse realmente aberta, passando a funcionar com ensino integral.
“Essa escola foi aguardada por mais de 15 anos. Quatro empresas pararam durante um tempo. A comunidade nem acreditava mais que seria possível que ela existisse. É um equipamento público (a escola) muito significativo, potente, bonito. Uma escola que tem uma vida que pulsa muito grande aqui”, afirmou Juliana.
De acordo com Juliana, o modelo de ensino em tempo integral ´é pensado a partir do desenho do indivíduo em sua totalidade, o que inclui características que repercutem para além do ambiente escolar.
“O tempo integral é pensar o sujeito na sua integralidade. Então a gente não trabalha só o cognitivo, só a cabeça, o Português, a Matemática, História, as disciplinas. Mas a gente traz também uma educação pelo afeto, pela presença, pela frequência. Além das matérias do currículo comum, nós temos a parte diversificada e eles têm eletiva, projetos de vida, inglês desde o primeiro ano”, disse a secretária.
Para ser tempo integral, uma unidade de ensino precisa ofertar, pelo menos, sete horas diárias de atividades. Em Vitória, a carga horária das escolas de tempo integral é de nove horas.
Tanto nos Cmeis quanto nas Emefs, essas nove horas são preenchidas por um currículo integrado, que visa, de forma articulada, o desenvolvimento das diferentes linguagens, conhecimentos e princípios, priorizando a participação ativa e o protagonismo das crianças.
Na educação infantil, que atende a crianças de 6 meses a 5 anos de idade – nos segmentos creche e pré-escola -, o currículo inclui o acolhimento da criança na unidade de ensino; o momento integrador, que envolve o banho, a higienização e o descanso; os ambientes temáticos, que são espaços de aprendizagem ocupados pelas crianças com contextos preparados pelos professores; e as oficinas temáticas – mais presentes na pré-escola -, em que a criança tem autonomia para escolher em qual ela quer participar, fazendo sua própria inscrição.
Já no ensino fundamental, que atende estudantes de 6 a 14 anos de idade, o currículo integrado articula tanto os componentes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com as disciplinas de Língua Portuguesa, Inglês, Educação Física, Arte, Ciências, Geografia, Matemática e História, quanto a parte diversificada, que compreende as práticas educativas, que são a Tutoria e o Acolhimento, e as metodologias de êxito, que são o Projeto de Vida, o Protagonismo, a Educação Científica e Tecnológica, a Orientação de Estudos e as Disciplinas Eletivas.