São Paulo – Estimada Rita Lee, Itaquera não é bem o “cu de onde sai a bosta do cavalo do bandido”, como você tuitou um tempo atrás. Em termos de distância do centro da cidade pode até ficar um pouco mais pra lá. Mas, como em toda parte deste surrado País da Copa, você vai achar de um tudo ali. Principalmente um tudo simples de bairro simples com todas as suas simplicidades: gente andando na rua, ônibus fazendo barulho, fila grande na frente da lotérica, igreja, favelas com aquele monte de caixa dágua azul no telhado, parquinho de diversões com tiro de rolha e até bandidos e cavalos.
Agora, vindo pela Avenida Jacu-Pêssego, quando ela toma forma de viaduto e passa sobre a Radial Leste, se você olhar para a sua direita, vai avistar algo que pode lhe parecer inacreditável. Do meio do casario e dos prédios baixos, a maioria suplicando tinta nova, brota, solitária e desafiadora da Lei Cidade Limpa, uma faixa completamente simples. Diz simplesmente: Welcome to Itaquera. “Welcome to” em azul, “Itaquera” em vermelho.
Quem a pendurou lá foi o Marco Antônio Bernardelli, dono de uma loja de móveis e colchões. Itaquerense desde que nasceu, há 58 anos, neto de italianos que, junto com japoneses e espanhóis, povoaram o pedaço, ele tem uma explicação simplíssima para a faixa: “Eu adoro meu bairro”, diz, bem baixinho e sem ênfase. “Pelo menos por um dia, Itaquera será o centro do mundo”, continua, se referindo à abertura da Copa logo mais. E o Marco já decorou a tabela. “Teremos seis jogos. A caminho do estádio, todas as delegações e boa parte dos torcedores estrangeiros passarão pelo viaduto e verão a faixa. Poxa, isso é demais!”
Falante de inglês, italiano, francês e estudante de alemão (pois é, Rita, Itaquera tem disso…), nos últimos dias o Marco deu para não sair da frente da TV a cabo, só para ouvir como os gringos falam o nome do bairro. Ele acha esquisito que os italianos da RAI pronunciem o U, um Itacuera com sotaque da Mooca. Lembra rastaquera e, decididamente, não é o caso. Por isso ele prefere os franceses da TV5 e seu naïf Itaquerrá. Ou os alemães da Deutsche Welle, com Itaquérra, mais marcial. Dos japoneses da NHK o Marco ainda não conseguiu entender bulhufas. E, no dia da abertura, promete, não vai desgrudar da CNN. “Quando aquele rapaz grisalho, o Anderson Cooper, disser Itaquera na CNN, ah meu Deus!, não vou aguentar.”
ARENA ITAQUERA – O Marco não conseguiu ingresso para assistir aos jogos da Copa. Na verdade, a Copa pra ele se resume às partidas no Itaquerão. “O resto, desculpa falar, não me interessa muito, não.” Ele diz sentir um orgulho tremendo do estádio do Corinthians e, debruçando-se sobre a mesa, olhando em volta, fala ainda mais baixinho: “E olha que eu sou palmeirense”. Agora, não venha chamá-lo de Itaquerão. Nem de Arena Corinthians. Muito menos Monumental da ZL. Aí o Marco vai levantar um pouco a voz e deixar aparecer o gentil carcamano que mora dentro dele: “Ninguém diz Pacaembuzão, Morumbizão, Maracanãzão. Tem de ser Arena Itaquera, ponto. Oficialmente, podem até batizar de Arena Corinthians, Emirates não sei das quantas. Mas o nome fantasia tem de ser Arena Itaquera”, ele pede, voltando à calma.
Bege é bege. O Marco fala que é do tempo da maria-fumaça, das carroças que entregavam leite em casa e – isso é mais forte que ele – chama as partes menos simples de São Paulo, como Avenida Paulista, onde vai uma vez por mês para frequentar o cinema, de “a cidade”. Para ele, viver em Itaquera é um privilégio. “Falam muito que aqui tem roubo, furto etc. E me diz em qual lugar desta cidade não tem?” O segredo é não dar mole. “Entrega nas favelas, que aqui na loja nós chamamos de vilinhas pra não ofender o cliente, só fazemos de manhã. E eu acompanho a maioria, porque gosto de conhecer pedaços de Itaquera que ainda não conheço.”
Se você for ver de perto, Rita, o Marco tem lá sua razão. Talvez a diferença de Itaquera é que ali quintal continua sendo quintal, não play; a cor bege ainda é bege, e não nude; e ninguém chama tortinha de quiche. Tudo menos complicado, como a vida deveria ser.
O Marco jura que até pouco tempo atrás não fazia ideia de que outros paulistanos pudessem ver o bairro dele com olhos meio embaçados, sobretudo de preconceito. Ficou surpreso pela primeira vez quando viu engenheiros de telefonia celular instalando antenas sob escolta armada. “Mas pra que isso?!”, se perguntou. Até o seu tuíte, Rita, com a história do cavalo do bandido, pegou o Marco de surpresa. E ele lamenta: “Poxa, comprei tantos LPs dela… Eu e meus amigos de escola, todos moradores de Itaquera. Uma turminha que gostava dos Mutantes e das comédias no Cine Itaquera. A Rita é muito querida aqui”. O Marco também perdoa o Milton Neves, que reclamou de o bairro ficar longe demais para ter um estádio de futebol. “E em que parte da cidade ele acha que estão os espectadores e ouvintes dele?!”
Na semana passada, quando a Prefeitura abriu mais uma teia de ruas em torno do estádio, o Marco foi lá. Passou a pé, carregando toda a sua calma e olho de arquiteto formado mas nunca de facto. Depois, circulou de carro examinando os trajetos. Fotografou para guardar de recordação e achou graça do pessoal que botava a cabeça pra fora da janela das kombis e caminhõezinhos de carreto para gritar “Vai, Curíntia!”, como se anunciasse a cura do câncer.
Apesar de considerar uns túneis inúteis e uns viadutos descabidos, ele achou tudo muito bom. “Isso aqui vai virar um novo Carrão”, avalia, tomando como exemplo o bairro vizinho, que, na esteira do Tatuapé, vive seu boom imobiliário. Aí só vai faltar você, Rita. Se bem que, se alguém bancar a ideia do Marco, um dia ainda haverá uma praça bem grande e florida na frente do portão principal do Itaquerão. Seu nome: simplesmente Praça Rita Lee.