No Dia Nacional da Consciência Negra, capixabas relatam casos de racismo e provam que ainda há um longo caminho a ser percorrido na conquista por respeito e igualdade racial.
Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 foram registrados 105 casos de racismo no Espírito Santo. Em 2020, foram 80 casos.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2017, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pretos e pardos são maioria no Espírito Santo, totalizando 61% da população. Os brancos correspondem a 38,5%. A pesquisa sobre raça é feita por meio de entrevistas autodeclarativas.
Mesmo estando em maior número, pretos e pardos não estão imunes a ataques racistas. As pessoas ouvidas pela reportagem evidenciam que essas agressões ocorrem de diferentes formas. Mas, em comum, está o julgamento pela cor da pele.
A modelo Melissa Malaquias disse que sofreu preconceito quando frequentava uma praia na Ilha do Boi, em Vitória, com as amigas.
“Uma mulher estava incomodada com a nossa presença e começou a mandar áudio pelo celular falando que a praia estava mal frequentada pois só havia preto, pobre e favelado”, relata.
Melissa cobrou explicações da atitude da mulher, que não quis se identificar. Disse que se ela estava se sentindo incomodada, poderia se retirar da praia. A mulher, então, passou a tratá-la com desprezo e chamá-la de “negrinha” e que ela estava se divertindo “com o dinheiro do tráfico”.
Apesar de não ter denunciado o caso por achar que precisava identificar a agressora, a modelo acha que deu o seu recado, permanecendo na praia. A mulher saiu rapidamente quando viu que estava sendo filmada.
“Uma semana depois, eu fiz uma campanha para uma grande marca de joias e saí em outdoors em Camburi, Laranjeiras, em comercial de TV. Se aquele dia ela não sabia quem eu era, tenho certeza que depois ela descobriu”, comenta.
Outra que também sentiu na pele o preconceito foi a coordenadora do Coletivo Beco, Crislayne Zeferina.
“Eu achava que todas as exclusões do meu currículo era por conta de onde eu morava, por ser do Bairro da Penha, em Vitória. Mas, uma vez, percebi que estava sendo seguida dentro de uma loja, no Centro de Vitória, mesmo sem eles saberem o meu endereço. Eu era seguida pela cor da minha pele e não pelo meu endereço. Foi aí que eu vi que o elemento central que norteia as opressões é a questão racial”, destaca.
A ativista comemora que a maior parte dos moradores das comunidades do Bairro da Penha já se reconhecem como negros. “Trabalhando a questão do racismo, eles já conseguem entender que o que estão passando, no momento em que enfrentam essas situações, é uma questão racial”, argumenta.
No coletivo, ela ajuda a fortalecer e estimular a conscientização racial através do projeto Conexão Perifa. Crislayne afirma que reconhecer-se como negro e de que vivemos numa sociedade racista são os primeiro passos para combater atitudes criminosas de preconceito.
“Enquanto a gente não admitir que o Brasil, o último país a abolir a escravidão, é um país racista não conseguiremos caminhar com as pautas antirracistas e aniquilar isto do país”, reforça.
Cidade dividida
“Vivemos em cidade dividida”, declara Gilberto Campos, historiador e integrante do Círculo Palmarino e da Convergência Negra. Ele descreve a situação geográfica de Vitória para explicar como nasce o chamado racismo estrutural.
“A partir da avenida Leitão da Silva, vindo do centro da cidade, do lado direito, há a orla e os bairros da classe média e bairros nobres com toda a assistência e estrutura. Já no lado esquerdo da Leitão da Silva estão os morros e as favelas. Nesses territórios, o Estado só se faz presente quando a polícia sobe o morro ou entra na favela para fazer operações”, descreve, apontando que a maioria da população nas regiões marginalizadas é negra.
O historiador disse que essa situação de desigualdade alimenta estereótipos que geram mais comportamentos racistas. “A desconfiança da pessoa negra sempre existe. Desconfiam que o negro não é capaz de trabalhos complexos, de que é um marginal, de que tem dificuldade para viver em sociedade”, enumera.
O resultado desse racismo estruturado é uma violência direcionada. A chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior a de uma pessoa não negra. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros no Brasil, em 2019, foi de 29,2, enquanto a da soma dos amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2.
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Os dados fazem parte do Atlas da Violência 2021, elaborado por meio de uma parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), ligado ao governo do Espírito Santo.
“A naturalização dessas situações dá a entender que o Brasil é pacífico nessas questões quando, na verdade, não é. Todas essas mortes violentas de pessoas negras é como se fosse uma guerra civil entre a população negra e o Estado”, aponta.
Lugar de escuta para a população negra
A desigualdade racial foi abordada também pela vice-governadora do Espírito Santo, Jacqueline Moraes, que nesta sexta-feira (19) participou de um evento de entrega de prêmios para a população negra.
Em sua fala, a vice-governadora, que é negra e vem de família com poucos recursos financeiros, destacou a importância de se garantir os direitos humanos, especialmente no que se refere à temática da promoção da igualdade racial, assegurando a cidadania plena.
“É necessário que possamos discutir amplamente sobre direitos, cultura e história da população negra. Sempre que eu uso a expressão ‘lugar de fala’, penso que também existe o ‘lugar da escuta’. E nós, da vida pública, precisamos desenvolver mais esse lugar de escuta para com essa população”, frisou.
Jacqueline Moraes prosseguiu: “Precisamos ouvir e pensar sobre o racismo para avançarmos na construção de uma sociedade antirracista e mais igualitária. Esse movimento faz com que a gente consiga manter esse lugar de escuta mais apurado, resultando no fortalecimento de ideias e projetos de governo”.
Saiba mais:
– Dia da Consciência Negra
O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na Região Nordeste do Brasil.
Zumbi foi morto em 20 de novembro de 1695 por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.
– Por que dia 20 de novembro?
A data de sua morte, descoberta por historiadores no início da década de 1970, motivou membros do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, em um congresso realizado em São Paulo, no ano de 1978, a elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência dos negros escravizados no Brasil, bem como da luta por direitos que os afro-brasileiros reivindicam.
Com isso, o 20 de novembro tornou-se a data para celebrar e relembrar a luta dos negros contra a opressão no Brasil. Por essa razão, o Treze de Maio, data em que a abolição da escravatura aconteceu, foi deixado em segundo plano.
O argumento utilizado pelos ativistas é que o Treze de Maio representa uma “falsa liberdade”, uma vez que, após a Lei Áurea, os negros foram entregues à própria sorte e ficaram sem nenhum tipo de assistência do poder público.
Como denunciar casos de racismo e de injúria racial
Tudo o que envolve ataques a uma pessoa ligados à cor da pele e a atributos da cultura afro-brasileira é considerado racismo. E pode vir em diferentes formatos: pode ser um comentário em forma de “piada”, a proibição de entrar em um lugar, a atribuição de um tipo de cabelo à sujeira ou falta de comprometimento. Não há meio-termo: são atitudes racistas.
Desde 1989, racismo é considerado crime e, desde 2003, o Código Penal Brasileiro prevê pena à injúria relacionada a raça ou etnia. De acordo com a Constituição Brasileira, pela lei 7716/1989, racismo acontece quando alguém impede outra pessoa de exercer algum direito por “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Recentemente, a homofobia foi equiparada a crime de racismo.
Já a injúria racial, de acordo com o artigo 140 do Código Penal, aborda uma expressão de ataque direto a uma pessoa visando diminuí-la por sua “raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
A denúncia sobre esses crimes pode ser feita:
– Em qualquer delegacia física ou pela delegacia online
– Em caso de flagrante, pode ligar para o telefone 190
– E, por telefone, pode acionar o 181 (Disque-Denúncia do Espírito Santo), o 100 (denúncias do canal de Direitos Humanos do Governo Federal)
– Se você for vítima de racismo ou injúria racial, acione um policial ou agente de segurança pública (pode ser pelo 190) para configurar flagrante na hora em que o crime estiver ocorrendo. O policial deverá ouvir e encaminhar os envolvidos a uma delegacia mais próxima para dar abertura a um boletim de ocorrência.
– Tente reunir provas desses ataques, como áudios, gravações em vídeo, usando o celular.
– Postar na rede social pode gerar engajamento mas é importante levar o material para a polícia. Somente as autoridades de segurança é que podem tomar atitude efetiva em caso de crime. Se o ataque foi numa via pública, verifique se há câmeras de videomonitoramento e informe à polícia para que ela possa requerer essas imagens. Isto pode servir de mais provas.
– Na internet ou na rua, se você presenciar atos racistas ou alguém ser atacado, você pode ser testemunha. Você pode gravar, por vídeo ou áudio, e se apresentar para a vítima e se voluntariar para ser sua testemunha.
– Casos de racismo e injúria na internet: tire print da postagem pois mesmo que a pessoa apague, você conseguirá provar o que ela escreveu. E não deixe de informar para a polícia o URL do perfil que fez a postagem. Isto dará um caminho para que a polícia chegue mais rapidamente ao autor do post criminoso.
Com informações da repórter Luana Damasceno, da TV Vitória/Record