“Eu saí do Brasil e fui para o México. Chegando lá, eu entrei em contato com um rapaz que me auxiliou, e ele me falou onde eu tinha que ir e tudo mais. Aí, no hotel que eu fiquei, veio uma van e me buscou. Nessa van estavam essas pessoas também e nos levou até a fronteira. Lá, nos soltou e falou: ‘andem até achar um buraco’. A gente andou uma hora, achamos o buraco e entramos”.
O relato é de um capixaba de 29 anos, que prefere não ser identificado. Ele tentou entrar ilegalmente nos Estados Unidos, em outubro do ano passado, em busca de uma melhoria na qualidade de vida.
Ao todo, foram duas tentativas. Na primeira, ele foi preso e deportado para o México. “No presídio, foram quatro meses. Saudade só da família que a gente sentia mesmo. E o desespero e vontade de sair logo”, contou.
Já na segunda tentativa, se entregou para os agentes de migração americanos. “Para sair eu entrei com um pedido de asilo. Então agora eu respondo a um processo. Vão ter várias cortes para responder ao processo e esperar o meu asilo ser aprovado ou não”, disse.
Essa é a realidade de muitos capixabas e de muitos brasileiros. Quem não conhece pelo menos uma pessoa que tenha apostado todas as fichas para realizar o chamado “sonho americano”? De acordo com os dados mais recentes, quase 80 mil brasileiros foram apreendidos em situação ilegal nos Estados Unidos.
“A maior parte das pessoas veem só o lado do sucesso, com o desejo de uma vida melhor. E, contrapondo a isso, a ideia de que, no Brasil, isso não vai ser possível. A ideia de que essa expectativa de uma melhoria de vida, de uma melhor qualidade de vida no Brasil, não é possível”, frisou a socióloga e pesquisadora Suely Siqueira.
Quem tenta entrar de forma irregular nos Estados Unidos geralmente contrata serviços ilegais responsáveis por organizar a viagem e intermediar o contato com os chamados “coyotes”, que auxiliam a travessia pelo México.
Na última sexta-feira (04), uma agência de turismo em Barra de São Francisco, noroeste do Espírito Santo, suspeita de fazer essa intermediação, foi alvo de uma operação da Polícia Federal.
O dono da agência é investigado desde 2019. Segundo a polícia, ele cobrava 25 mil dólares por pessoa para atravessá-la ilegalmente para os Estados Unidos. O valor corresponde a mais de R$ 132 mil, pela atual cotação.
O superintendente da PF no Espírito Santo, delegado Eugênio Ricas, disse que, com o dinheiro, os criminosos contratavam pessoas para fazer a imigração ilegal e falsificavam os passaportes.
“Com esse dinheiro, o grupo criminoso emitia passaportes, muitas vezes ideologicamente falsos, e contratava os chamados ‘coyotes´’ para fazer a travessia ilegal. A ousadia dos criminosos era tamanha que os contratos firmados tinham o timbre da Polícia Federal”, frisou.
A equipe de jornalismo da Rede Vitória tentou, mas não conseguiu contato com a agência de turismo investigada pela PF.
Travessia ilegal é muito perigosa, alerta polícia
Segundo a polícia, a travessia ilegal é perigosa. As pessoas são levadas até uma cidade no México e ficam semanas em casas bem simples, em condições precárias, até chegar o momento certo para atravessarem.
Do México, elas precisam pular um muro, de cerca de 16 metros de altura, o que corresponde a um prédio de oito andares. Ainda são frequentes relatos de mulheres estupradas.
“A travessia é extremamente perigosa e pode envolver caminhadas no deserto por horas ou então ter que saltar muros extremamente altos, com riscos enormes de lesões, de sofrerem graves problemas”, destacou o delegado regional de combate ao crime organizado da Polícia Federal, Ivo Roberto Costa da Silva.
O professor de relações internacionais Daniel Carvalho também destaca os perigos que envolvem a tentativa de entrar ilegalmente nos Estados Unidos.
“A pessoa que contrata o coyote se submete a diversos riscos. Primeiro o financeiro, de perder todo aquele dinheiro que investiu em alguém que vai lhe passar um trambique. Ora, a pessoa já está fazendo uma coisa ilegal, então não é exatamente uma pessoa de confiança. Segundo: o risco é muito grande de não conseguir. Então a pessoa vai investir 25 mil dólares, como esse caso em Barra de São Francisco, e pode não conseguir. Terceiro: atravessar o deserto é difícil. São variações de temperatura muito grandes, é uma aridez muito grande. Então é um risco para a própria saúde. Quarto: a gente tem relatos de coyotes que fazem agressões físicas, para dizer o mínimo, contra esses imigrantes”.
O professor explica ainda que é preciso atender a uma série de critérios para conseguir a permissão para morar nos Estados Unidos.
“A primeira coisa que ela faz é ter um patrocinador lá nos Estados Unidos. Patrocinador significa um parente direto que já more lá ou um cônjuge americano. Então se eu quiser ir morar nos Estados Unidos, eu preciso ter, por exemplo, uma proposta de emprego documentada, e a empresa tem que fazer a solicitação: ‘gostaríamos que o Daniel venha trabalhar conosco’. Aí eu posso entrar em contato aqui”, explicou.
Segundo Daniel, tentar burlar as regras do país americano pode custar caro. A dica é sempre pedir licença e entrar pela porta da frente.
“É a mesma coisa que tentar entrar na casa do seu vizinho. Você não vai entrar na casa do seu vizinho sem a autorização dele. Se você tentar uma vez, bater a porta e ele negar, bater duas, na terceira ele até pode se simpatizar. Mas se você entrar pela janela, sem autorização, ele nunca vai se simpatizar”.
Mandados de busca e apreensão cumpridos no ES e MG
Além de Barra de São Francisco, a Operação Cristo Rey cumpriu mandados de busca e apreensão na cidade de Central de Minas, em Minas Gerais. O principal investigado na operação teve que entregar o passaporte aos policiais e pagar uma fiança no valor de 50 salários mínimos.
O montante deverá ser recolhido por depósito judicial no prazo de 48 horas. Caso a determinação seja descumprida, será expedido mandado de prisão para o rapaz.
Além disso, a ação também teve como objetivo recolher novos elementos de prova para a conclusão das investigações.
Em 2021, a Polícia Federal recebeu informações de que uma agência de viagens de Barra de São Francisco estaria atuando como intermediária entre pessoas interessadas em emigrar para os Estados Unidos e “coyotes” que atravessariam ilegalmente essas pessoas na fronteira do México.
Segundo a polícia, os contratos firmados entre a agência de turismo e os interessados tinham os símbolos da Polícia Federal.
No decorrer da investigação preliminar, houve uma intensa cooperação dos policiais capixabas com o Oficialato de Ligação da Polícia Federal em El Paso, no Texas, com a unidade de inteligência da US Border Patrol, além da Adidância da Polícia Federal em Washington.
Foram realizadas várias diligências, incluindo a coleta de inúmeros dados de interesse para a investigação, tais como valores cobrados, pessoas envolvidas no exterior, locais de embarque e permanência dos migrantes e estratégias para a entrada ilegal no país norte-americano.
Chamou a atenção dos investigadores a existência de advogados americanos contratados para atuarem nos processos dos migrantes eventualmente detidos e das possibilidades de manipulação das regras migratórias americanas no intuito de entrar naquele país.
ES é o terceiro Estado em número de migrantes ilegais
O número de brasileiros tentando ingressar ilegalmente nos Estados Unidos disparou em 2021. Estima-se que 150 brasileiros foram detidos diariamente pelas agências policiais americanas no ano passado, chegando a quase cinco mil por mês.
Não há dados que indiquem quantos brasileiros conseguiram realizar a travessia organizada por grupos criminosos conhecidos por “coyotes”.
No ano fiscal norte-americano de 2018, foram documentadas 1.589 apreensões de brasileiros que ingressaram ilegalmente no país. No ano fiscal de 2019, esse número saltou para 17.890 apreensões.
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Em relação ao ano fiscal de 2020, em razão da pandemia da covid-19, o número de apreensões de brasileiros diminui, totalizando 7.014 casos.
Com a flexibilização das restrições, no ano fiscal de 2021, foi registrado o recorde de apreensões de brasileiros. Em setembro, foram contabilizados 78.842 casos.
Os capixabas compõem o terceiro maior grupo nesse universo de detidos, atrás somente de Minas Gerais e Rondônia.
A Polícia Federal alerta que, apesar da mudança no governo americano com a eleição do presidente Joe Biden, as regras migratórias americanas não foram flexibilizadas. A travessia ilegal pela fronteira mexicana, além de cara, é perigosa e traz riscos inúmeros às pessoas.
Além disso, as organizações criminosas dedicadas a esta atividade não têm nada a perder. Há inúmeros relatos de agressão, estupros, furtos e até mesmo abandono dessas pessoas no deserto americano pelos “coyotes”.
No começo de setembro de 2021, o corpo de uma brasileira de 49 anos foi encontrado durante uma patrulha de agentes norte-americanos em uma área desértica no Novo México, nos Estados Unidos.
Com informações da repórter Luana Damasceno, da TV Vitória/Record TV