MASSACRE DE ARACRUZ

Professoras lutam para voltar a andar e parentes enfrentam o luto

Degina Fernandes e Sandra Guimarães foram baleadas pelo adolescente de 16 anos que atacou duas escolas há quatro meses na cidade

Foto: Montagem / Folha Vitória
As professoras Degina e Sandra se recuperam dos tiros que levaram no ataque à Escola Primo Bitti

As professoras Sandra Regina Guimarães e Degina Fernandes sobreviveram aos tiros no massacre de Aracruz e lutam para voltar a andar. Wellington Banhos perdeu a mulher naquele dia e hoje tenta reorganizar a vida sem a companheira com quem teve três filhos. Já Ana Célia Zuccolotto ainda está muito machucada com a morte da neta.

As feridas abertas no dia 25 de novembro de 2022, quando um adolescente de 16 anos invadiu a Escola Estadual de Ensino Fundamental Primo Bitti e o Centro Educacional Coqueiral de Aracruz, em Aracruz, no Norte do Espírito Santo, ainda não cicatrizaram.

Dores diferentes que refletem uma mesma tragédia, como conta Ana Célia Zuccolotto, que perdeu a neta, Selena Sagrillo Zuccolotto, no ataque.

Foto: Repórter Record Investigativo
Ana Célia tenta superar a perda da neta

“Ela sempre ficou comigo. A maior parte da vida dela, ela esteve comigo. Eu cuidava dela. Não dá nem para mensurar o tamanho da dor”, relata Ana Célia, entre lágrimas, em entrevista inédita ao Repórter Record Investigativo, da TV Vitória/Record TV, programa exibido no último dia 16 de março.

“Era muito cuidado, muito amor. Faz falta o carinho dela”, desabafa.

Selena foi morta aos 12 anos, dentro de um dos lugares que mais gostava de estar.

“A escola fica próximo aqui da nossa residência. Ela ia contente, feliz, para escola. Ela era muito inteligente, não precisava de ajuda na lição de casa, ela se virava totalmente sozinha. Ia para o quarto, quando eu falava: ‘E aí, Selena?’ E ela falava: ‘Vó, vou na casa de fulano’, eu falava assim: ‘Tá, e as tarefas?’. E ela: ‘Já terminei’. Um ano ela falou que queria ser arquiteta. Não tinha uma coisa certa. Ela só sabia que queria morar fora do país, com qualidade de estudo melhor. Era muito inteligente”, conta Ana Célia.

Entre lágrimas e saudade, Ana Célia busca o consolo para superar a perda repentina da neta.

Foto: Repórter Record Investigativo
Selena e a avó Ana Célia
“Uma neta única, filha única. Não tem como substituir isso. Porque ela só tinha 12 anos, tinha uma vida toda pela frente. É muito doloroso. Esse menino não tem noção do que ele fez da vida de todas essas famílias. Acho que faltou muito amor pra ele, porque ele não soube dar amor, ele só deu ódio. E minha neta era só amor”, desabafa.

Professora diz que não volta mais a dar aulas

A escola também era o ambiente em que a professora Sandra Regina Guimarães se sentia feliz.

“Ser professor é tudo. O professor é aquele que você ensina e aprende o tempo todo. Eu escolhi fazer isso e sempre fiz da melhor maneira possível”, relata Sandra.

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Sandra disse que não volta mais a dar aulas

Mas os sete tiros que levou há três meses não atravessaram só as pernas da professora: carregaram junto os sonhos construídos em mais de três décadas de magistério.

“Não vou voltar mais a dar aulas. Eu tô parando, mas tô parando de um jeito muito chato. Fico muito triste com isso porque você dá aula há tantos anos, dedica sua vida na escola e você vai sair da escola sem aquele ar de felicidade porque eu não vou na escola mais. Então, o que que essa pessoa provocou? Provocou uma tristeza”, desabafa.

Sandra foi socorrida na escola Primo Bitti e levada a um hospital da cidade, passou por duas cirurgias.

“Os médicos não sabem nem explicar, na verdade, porque o tipo de arma que foi usado esfarela o osso. Foi o que aconteceu. Meu fêmur esquerdo quebrou, esfarelou. A sorte é que foi perto do joelho e não atingiu a articulação. Como ele tá bem aqui embaixo, eu perguntei ao médico: ‘Eu vou jogar tênis?’ Tenho que esperar pra ver se eu vou conseguir voltar a jogar tênis”, conta Sandra.
Foto: Repórter Record Investigativo
Fixador na perna esquerda de Sandra

A professora de História é também atleta. Chegou a ser semifinalista de um torneio e foi de bicicleta do Espírito Santo até a Bahia.

“Falam que por eu ter uma massa muscular, eu vou andar mais rápido. Pelos médicos, a previsão era andar em junho. Daí pra lá. Previsão é assim. Pode ser mais”, disse.

Desejo de não depender das pessoas

O desejo da professora Degina Fernandes é ainda mais simples: “Tomar banho em pé, não depender de alguém, por exemplo, pegar um copo d’água, poder cuidar da minha casa, dos meus filhos…”, enumera.

Foto: Repórter Record Investigativo
Degina usa andador para se locomover pela casa

A professora de Língua Inglesa tem três filhos: Loren e Enzo são gêmeos e estão com 8 anos. Antony tem apenas 10 meses e ainda mamava no peito quando a mãe quase morreu.

“Durante o tempo em que fiquei no hospital, eu ficava pensando: ‘Poxa, não vou mais poder dar mamar para ele’. Teve um dia que eu fui tomar banho no hospital e começou a sair leite. Só que quando eu saí, a quantidade não era mais a mesma. E eu tinha tomado muito remédios, muitos antibióticos, ele tava bem, comendo. Eu falei: ‘Ah, vou deixar, não vou dar mais o peito’. Aí eu parei”, conta a professora.

Degina foi alvo de oito tiros e chegou a ser desacreditada pelos médicos.

“A médica mesmo falou para o meu marido: ‘A situação não tá boa. Se você quiser chamar alguém para fazer uma oração, pode chamar’. Teve um momento em que eles falaram que se minha perna não tivesse circulação em tantas horas, que iriam amputar as duas pernas”, relata.

Ela foi submetida a três operações e ficou 25 dias internada.

“Passei pela do estômago, para colocar o fixador na perna direita. Também tiveram que drenar o sangue do meu pulmão. Na cirurgia de estômago, tiveram que costurar o intestino grosso, tiveram que tirar tudo, fazer lavagem, tirar a parte que tava perfurada do intestino menor e costurar, fazer a ligação de um no outro”, detalha.

Desde que recebeu alta, Degina conta com a ajuda da mãe, Maria de Fátima, e do marido, Leandro Fernandes, para quase tudo.

“Senti medo porque o médico que fez a cirurgia dela falou que era um estado delicado, grave, mas eu não perdi a esperança. Quando a vi pela primeira vez, só tive um sentimento de agradecer a Deus por ela ter recebido os cuidados, da cirurgia ter dado tudo certo”, disse Leandro.

Foto: Repórter Record Investigativo
Leandro e Degina

Eles estão casados há 11 anos e Leandro não consegue nem imaginar a vida sem a companheira.

“Seria difícil ficar sem ela nesse momento de nossa vida. Somos um casal muito jovem, temos um projeto para essa vida. Não sei nem como eu poderia suportar essa dor de perder a minha esposa, de perder a mãe dos meus filhos”, complementa Leandro.

Viúvo de professora tenta superar a dor

O eletricista Wellington Banhos tenta aprender a conviver com a ausência da esposa, a professora Maria da Penha Pereira de Melo Banhos.

“Nossa vida era uma corrente de ajuda. Sempre um ajudando o outro. Não tinha esse negócio de eu para lá, ela para cá. Os dois juntos. Infelizmente, essa corrente se quebrou. Eu sempre fui um esposo presente. Nunca fui ausente.Sempre estava com ela aqui”, conta.
Foto: Acervo pessoal
Penha e Wellington: casamento

Wellington foi casado com a professora por quase 20 anos. Penha morreu na escola Primo Bitti com cinco tiros.

“A minha intenção era chegar lá na escola, ver ela, abraçar. Mas eu nem tive essa oportunidade”, revela.

A lembrança do amor que viveu com a mulher é o que dá um pouco de cor à vida do viúvo, assim como os três filhos.

“Nossa, eu me lembro até do primeiro dia em que eu a conheci. Ela tava com o cabelo amarradinho, veio do hospital, trabalhava lá. Eu tava na pracinha, chamei ela pra conversar. Me lembro de tudo. Ficaram muitas lembranças boas. Eu só tenho mesmo a agradecer a Deus por ter ela na minha vida porque sem ela eu não teria as crianças. Foi uma benção, mesmo”, conta Wellington, emocionado.

Guilherme tem 11 anos; Isabela, 7; a mais velha, Nicole, de 17 anos, é calada. É ela quem tem sido o braço direito do pai nesse momento.

Foto: Repórter Record Investigativo
Wellington e os filhos Nicole, Guilherme e Isabela

“Eu tô me planejando também para justamente ter um apoio. Mas aí eu tenho que estar conversando com eles. Não gosto de tomar decisão sozinho. Eu sempre gosto de me orientar com minha filha Nicole, com os dois também. Nunca gostei de tomar decisões só. Já retornei ao trabalho”, disse.

Wellington estava sem trabalhar desde o dia do massacre de Aracruz. Eram 24 horas dedicadas às crianças. Hoje, tenta criar novas rotinas.

“É claro que a gente tem que alinhar as questões de horários, de arrumação, banho, essas coisas assim. Mas eu creio que vai dar tudo certinho”, conta.

O eletricista atualmente trabalha das 15h à 0h. Ele é empregado de uma mesma companhia há duas décadas. Desolado com a morte da mulher, chegou a pedir as contas.

“Como é que eu ia fazer? Quando eu saía para trabalhar, minha esposa ficava com as crianças. Como que eu ia lidar com essa situação? A única coisa que me parou mesmo foi essa situação aí, em que eu tive que ficar afastado dois meses para dar assistência às crianças, que foi uma coisa que me forçaram a parar, porque eu nunca parei para pegar seguro-desemprego”, relata Wellington.

Há três semanas foi concedido em juízo o pedido de pensão aos filhos, mas como o Estado ainda pode recorrer, Wellington segue sem receber nada.

“O orçamento da família está pela metade, mas uma hora vai sair. O que é direito dela, vai sair”, diz o eletricista.

O advogado de Wellington, André Oliveira, destaca a importância de buscar a pensão na Justiça como forma de minimizar o sofrimento de pai e filhos:

Foto: Repórter Record Investigativo
André Oliveira
“A gente entende que são três crianças que ficaram sem a mãe, é um marido que ficou sem a esposa. Toda uma estrutura familiar que é desconstruída e o recurso financeiro os ajudaria a tentar de alguma forma ter um paliativo para isso”, afirma André Oliveira.

Sobre o assunto, a procuradora-geral do Ministério Público do Espírito Santo, Luciana Andrade, disse que o órgão estão acompanhando o caso:

Foto: Repórter Record Investigativo
Luciana Andrade
“O Ministério Público está atento e obediente à legislação, a sua responsabilidade. Tem tomado as providências para que os familiares sejam amparados, sobretudo esses filhos menores, e o mais rápido possível, tanto o Estado ou os responsáveis sejam obrigados a promover essa indenização”, disse a procuradora-geral.

Gastos com medicamentos e fraldas

A professora Sandra disse que teve apoio do Estado dentro do hospital até o atual momento. Ela recebe ajuda para quase todas as medicações que precisa tomar.

“Tem medicamentos que eu compro, como a Pregabalina (remédio para dor neuropática). Não tem, eu compro. Eu tenho gasto com algumas coisas: a fralda, por exemplo, quando usava fralda. Hoje, eu ainda uso um pouquinho. Aí falavam: ‘Ah, você já gastou a fralda do mês’. Um exemplo, porque naquele mês eu só posso usar, vamos supor, uma quantidade x de fralda para pegar no outro mês. Com fralda, eu também já gastei. Já era assim. Se colocar, já gastei muito dinheiro”, disse a professora.

Sandra está sendo cuidada pela amiga Luciana Pedrini, que também é professora:

“Quando me contam tudo o que aconteceu, eu tenho a cena toda criada na minha cabeça, porque eu conheço cada espaçozinho ali. Consigo visualizar tudo o que aconteceu. E isso é como se eu estivesse lá, naquele momento”, afirma Luciana.

Foto: Repórter Record Investigativo
Sandra recebe ajuda da amiga Luciana

Ela está morando na casa de Sandra e ajuda a amiga a se distrair enquanto está presa à cadeira de rodas.

“A minha sorte é que apareceram uns anjos na minha vida”, diz Sandra.

Atentado completa quatro meses

O atentado a duas escolas de Aracruz, que deixou três professoras e uma estudante mortas, completa quatro meses neste sábado (25). Na tragédia, em que um adolescente de 16 anos entrou nas duas instituições atirando, outras 12 pessoas ficaram feridas e precisaram ser socorridas.

Foto: Montagem / Folha Vitória
Penha, Cybelle, Selena e Flávia morreram no massacre de Aracruz

Morreram as professoras Cybelle Passos Bezerra Lara, de 45 anos; Maria da Penha Pereira de Melo Banhos, de 48 anos; e Flávia Amboss Merçon Leonardo, de 36 anos; e a estudante Selena Sagrillo Zuccolotto, de 12 anos.