Mais de 650 crianças foram vítimas de maus-tratos ou abandono no ES
Na Grande Vitória, as cidades de Serra e Cariacica lideram o ranking de cidades com mais casos de maus-tratos infantil
Dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) do Espírito Santo mostram um cenário preocupante. Durante todo o ano de 2022, 655 crianças foram vítimas de algum tipo de agressão. Na Grande Vitória, Serra e Cariacica lideram o ranking de cidades com mais casos de maus-tratos infantil.
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Em 2023, até o dia 12 de março, a Sesp informou que foram registrados 145 casos de diferentes tipos de violação às crianças. Deste total, 64 casos foram de maus-tratos, 62 são de lesão corporal e 19 denúncias de abandono de incapaz.
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Em todo o Estado, Serra e Cariacica lideram, empatadas, o ranking de cidades com mais casos de lesão corporal. Foram 47 casos registrados nas duas cidades. Abaixo delas está a capital Vitória, com 43 casos em 2022.
Em entrevista à reportagem do Folha Vitória, a delegada Thais Cruz, adjunta da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), explicou que, diferente da lesão corporal, o crime de maus-tratos não afeta diretamente a integridade física da vítima.
"Não é uma ofensa direta à integridade física, não deixa uma marca aparente. Nos maus-tratos você expõe a vida e a saúde da pessoa. Além disso, ele também pode ser praticado contra idosos ou pessoas incapazes e geralmente esse ato está aliado a pessoas que abusam do meio de correção e desejam, de maneira errônea, aplicar algum tipo de disciplina", afirmou.
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“Muitos abusadores já foram abusados”, diz delegada
De acordo com a delegada, para além de crimes relacionados aos maus-tratos, lesão corporal ou abandono, geralmente, as crianças que são vítimas de qualquer tipo violência, seja crimes sexuais ou outros tipos de abuso, tendem a reproduzir o ato.
"Muitos abusadores já foram abusados. Já tivemos casos de crianças de dois anos que reproduziam os atos do pai, que abusava da mãe. Também existem casos que surgem entre irmãos, onde o irmão mais velho é abusado e reproduz o ato com a irmã mais nova", citou a delegada.
Importância de denunciar
A delegada da DPCA explicou também que, se a pessoa responsável pela criança, vir a agressão e não fizer nada, ela responde pelo crime de omissão.
Além de omissão, a delegada Thais afirma que há casos em que, a pessoa responsável pela criança também pode responder por lesão corporal pelo fato de não ter feito nada a respeito ao perceber a agressão contra a vítima menor de idade.
Os canais disponíveis para a denúncia são o Disque 100 ou 181. Em ambos casos, a denúncia é feita de maneira anônima e, caso a polícia chegue no momento ou pouco depois do episódio de agressão, a pessoa suspeita pode ser presa em flagrante.
Consequências psicológicas
A reportagem do Folha Vitória também ouviu um psicólogo para entender as consequências, em curto e longo prazo, dos maus-tratos, violências variadas e abandono.
Sobre o assunto, o especialista Lucas Polezi de Couto afirmou, logo de início, que a estimativa de mais de 650 crianças é muito alta e preocupante. Além disso, apesar de não ser possível afirmar de forma certeira quais sequelas e traumas cada uma pode apresentar, é provável que grande parte apresente alguma questão emocional a partir desse histórico.
"É muito comum pessoas que passaram por isso terem dificuldades para lidar e gerenciar as emoções, até mesmo para expressá-las. Com frequência podem desenvolver quadros depressivos, ansiosos, dificuldades de aprendizagem e isso pode afetar a vida escolar, social e dificultar que criem vínculos e noções de hierarquia e respeito, que diferem, é claro, do autoritarismo", disse.
Segundo o psicólogo, quem passou por maus-tratos pode passar a ter medo de confiar em outras pessoas e de passar por outras experiências traumáticas.
Ele destacou que algumas pessoas podem apresentar também maior irritabilidade e, em curto ou longo prazo, apresentar comportamentos característicos de estresse pós traumático.
"O histórico de maus-tratos, violência e abandono também pode ser fator de risco para comportamentos também de risco – à própria vida ou a de outras pessoas. É comum a autolesão sem intencionalidade suicida ou mesmo com. Claro que não é que vá acontecer em 100% dos casos, mas grande parte das vítimas pode apresentar", destacou Couto.
Para ele, algumas variáveis impactam na maior facilidade ou dificuldade de enfrentar este histórico. "Por exemplo: se após tudo isso, a criança não teve rede de apoio, suporte emocional, acompanhamento com psicólogo, psiquiatra, neuropediatra ou assistente social, isso pode fortalecer a possibilidade dos efeitos. E isso tem impacto tanto na infância, quanto na adolescência e até na vida adulta", destacou.
Nem sempre quem sofre abuso se tornará abusador
De acordo com Lucas, não necessariamente uma pessoa que foi abusada se tornará uma abusadora e isso, muitas vezes, dependerá da forma como a vítima foi acolhida após as situações de violência ou abandono.
Mas sim, pode ser que a vítima passe a ter um comportamento abusivo semelhante ao que recebeu ou mesmo algum diferente.
"Alguns aspectos que podem contribuir são, por exemplo, a forma como foi acolhida ou se foi ridicularizada ou até violentada novamente. Muitas vezes quando vamos receber alguém que foi vítima, algumas medidas podem causar mais traumas se não utilizadas de forma apropriada, como não garantindo o sigilo sobre a situação ou não lidando com o cuidado necessário", pontuou.
Para o especialista, é fundamental ter cuidado no trato com a pessoa abusada, pensando em como será retirada daquela condição, como será acolhida fora do ambiente familiar.
"O que ocorre muitas vezes é de ser retirada do ambiente familiar e ser colocada em uma instituição social, sem acompanhamento, sem um trato com cuidado, e isso gera novos traumas. É preciso acolher, mas tratando com medidas de proteção. É preciso, sobremaneira, afeto, empatia, compaixão, ética e responsabilidade", esclareceu o psicólogo.
Couto deixou claro que pode ser que a pessoa que passou por abuso, que então passe a ter uma rede de apoio funcional, não reproduza o abuso, já que houve um processo de psicoeducação, que a ajuda a reconhecer que reproduzir violências causará traumas em outras pessoas.
"Algumas podem reproduzir comportamentos sem ter consciência do impacto que causará no outro. Então isso tudo precisa ser olhado sob aspectos legais, éticos e psicossociais. É necessário ter atenção para não reproduzir violências, nem criminalizar a vítima, não expondo à vulnerabilidade. Um exemplo que cito é o da criança que engravidou, teve o aborto autorizado, mas uma série de instituições protestaram para que ela não o fizesse", destacou.