"Me libertei para ser feliz": a história de quem venceu o crack e voltou para a família
Renilda Maria teve perdas familiares que a levaram ao vício e a viver na rua. Agora, ela escreve um novo capítulo da sua vida, mais feliz e cheio de sonhos
O sorriso gentil e a simpatia de Renilda Maria Pereira ainda não conseguem esconder o olhar cansado de quem muito sofreu. Prestes a completar 57 anos, desta vez ela vai comemorar, além do aniversário, a nova vida que ganhou após enfrentar a dura realidade de viver nas ruas e vencer o vício em crack.
A dona de casa engravidou do primeiro filho aos 19 anos. Mãe solteira e sem apoio da família, ela precisou buscar emprego para sustentar a casa: foi camareira de hotel, manicure e fazia “bicos” lavando as roupas de famílias em Vitória.
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Além de perder a mãe para um câncer agressivo, Renilda precisou lidar também com as prisões do filho mais velho. Ela até dava conta de tudo, mas a rotina foi ficando cada vez mais exaustiva.
Os remédios para dormir já não faziam mais efeito, então buscou algo mais forte para tentar anestesiar a dor que sentia. Foi aí que, por influência de um companheiro, ela conheceu o crack.
"Meu filho foi preso três vezes. Praticamente uma vida no presídio, mas eu nunca o abandonei. Dói falar isso, mas aqui fora ele não me reconhecia como mãe, tinha vergonha. Eu não aguentava mais, não me reconhecia, estava cansada carregando a responsabilidade de criar três filhos. Tomava remédio controlado, mas eles já não faziam mais efeito. Com a morte da minha mãe eu não aguentei. Usei o crack pela primeira vez e não consegui sair dele", contou ela.
Após ter liberdade concedida pela terceira vez, o filho mais velho de Renilda não pensou em mudar de vida e continuou no mundo do crime. Segundo ela, o rapaz era envolvido com tráfico de drogas e foi assassinado em novembro de 2021.
Dele, restaram as lembranças e a saudade, marcada no coração de mãe e na pele, com uma tatuagem que diz: "Parte de mim, entende sua partida. Outra parte morre de saudade, filho."
"Depois que o mataram, eu perdi a vontade de viver. Quando recebi a notícia, fui morar com o Mateus, meu filho mais novo, que me acolheu. Eu consegui emprego em um restaurante e fiquei cinco meses sem usar nada, mas um dia me deu vontade e usei, então Mateus me mandou sair da casa dele e eu fui para a rua. Eu não o culpo por isso, porque sei que ele já tinha essa sobrecarga também."
Renilda então passou a fazer parte do grupo de mais de 220 mil pessoas que vivem em situação de rua no Brasil, segundo dados do Cadastro Único de julho de 2023.
A dona de casa tentou voltar à rotina, mas as tentativas foram frustradas pelo vício. Ela tinha a casa própria e, após presenciar um crime no imóvel, decidiu vendê-lo por R$ 30 mil. Metade do valor foi usado para sustentar o vício.
“Fiquei um ano sem me comunicar com ninguém da minha família. Eu aluguei uma casa, mas não gostava de ficar lá. Também vendi a minha casa por R$ 30 mil e R$ 15 mil gastei com crack, aí comecei a reciclar. Eu só reciclava cantando, deixava muita alegria por onde passava. Acho que fui escolhida por Deus porque nunca passei fome na rua, nunca senti frio na rua. Os próprios moradores da região gostavam de mim", relembrou Renilda.
Vícios: "tentativa sofrida para lidar com algum vazio"
O psicólogo Alexandre Vieira Brito explica que os vícios, muitas vezes, são tentativas sofridas para lidar com alguma angústia ou vazio, como foi o caso de Renilda durante o processo de luto.
Segundo ele, quando a dor chega e não é possível aliviá-la, muitos buscam outras alternativas, como as drogas e substâncias psicoativas. Tal escolha, no entanto, pode ser destrutiva.
"Entrar em contato com seu luto, não é ruim. A dor e a tristeza, não necessariamente são ruins. O problema é quando isso pode evoluir para um transtorno mental, um vício ou uma dependência química. Essa dor, nem sempre você consegue simbolizá-la. Então as drogas podem entrar como uma tentativa de lidar com essa dor. Mas é uma tentativa sofrida, é uma tentativa que pode ser destrutiva", afirma o psicólogo.
Um presente de aniversário: Renilda se libertou para ser feliz
Em 23 de maio de 2023, quando completou 56 anos, Renilda refletiu sobre a vida e decidiu que era hora de abandonar as ruas e voltar para casa. Com saudade dos filhos, das netas e preocupada em cuidar a saúde, ela pediu ajuda em um Centro Pop da capital e, na sequência, foi encaminhada para o Abrigo I, em Vitória.
"Eu falei que já queria entrar no abrigo liberta para cuidar da minha saúde, então me dei esse presente de aniversário e me trouxeram para o abrigo. Aqui eles não tratam a gente com indiferença, aí abri meus olhos e vi que podia recuperar minha família. Aqui me levaram no médico, fiz curso de design de sobrancelha. Entrei pesando 43kg e hoje estou pesando 78kg. Fiquei 8 meses aqui e ficaria até mais, se precisasse", relatou.
Acolhimento foi fundamental
Mais de 1.100 pessoas, entre homens e mulheres que viviam situação semelhante à da Renilda, já passaram pelo Abrigo I desde julho de 2021, quando foi criado pela Prefeitura de Vitória.
A instituição, que funciona 24 horas e tem 50 vagas (40 masculinas e 10 femininas), atualmente está com 100% de ocupação. Em quase três anos de existência, o abrigo já coleciona muitas histórias de superação.
Além de moradia, quem chega até lá por meio de encaminhamento, como aconteceu com Renilda, também recebe um acolhimento de chegada com kit completo de higiene, cama para dormir, alimentação e roupa limpa.
Em seguida, a equipe multidisciplinar elabora um plano individualizado de atendimento (PIA) e são ofertadas diversas atividades socioeducativas, esportivas e de escolarização, como a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
"As pessoas chegam e, no primeiro momento, priorizamos as necessidades básicas. Depois nossa equipe vai levantar se elas estão com seus documentos, se precisam tirar segunda via. Tem uma equipe ligada ao jurídico que faz esse acionamento para que esses documentos sejam garantidos", explicou a secretária de Assistência Social, Cintya Schulz.
A secretária enfatiza que o município considera as pessoas em situação de rua como sujeitos de direito, que têm direito a serviços sociais e devem receber apoio para superar essa condição, através de acesso a serviços que promovam sua confiança e permitam a mudança de vida.
De volta para casa: o recomeço feliz de Renilda
Falando em superação, longe do vício e disposta a escrever uma nova história, Renilda deixou o abrigo e foi acolhida mais uma vez pelo filho. Ela conta que aprendeu a encontrar paz e felicidade nas pequenas coisas da vida.
"Foi tão gostoso voltar para minha família. Agora eu posso curtir as minhas netas, meu filho e meu genro me tratam muito bem e eu me sinto feliz com as pequenas coisas. Só o fato de levantar, deitar, tomar um banho. Se eu quero uma pizza, eu posso comer. Eu não acreditava na felicidade, mas ela chegou hoje pra mim."
De volta ao abrigo, desta vez como visitante, Renilda fez questão de mostrar o lugar onde passou oito meses de sua vida. Refletindo sobre quem já passou por lá, ela destacou a importância de ter força para enfrentar os desafios.
Quase 3 mil pessoas em situação de rua no Espírito Santo
Uma pesquisa divulgada pelo Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, apontou que quase 3 mil pessoas viviam em situação de rua no Espírito Santo em julho de 2023.
Os dados são do Cadastro Único do governo federal e mostram ainda o perfil de quem vive nessa condição. Do total de 2.931 pessoas em situação de rua no Estado, 88% são homens e pouco mais de 11% são mulheres.
A faixa etária predominante é de 40 a 49 anos, seguido de 30 a 39 anos e 50 a 59 anos. Além disso, a maioria afirma que passou a morar na rua após problemas familiares e desemprego.
Como funciona o atendimento à população em situação de rua?
Em Vitória, onde a média mensal é de 418 pessoas em situação de rua, o atendimento é feito por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social, que monitora todo o território de Vitória diariamente e realiza atendimentos.
Durante a abordagem, são realizadas intervenções no que diz respeito à oferta de atendimentos relacionados a questões assistenciais. O trabalho não consiste na retirada compulsória de pessoas em situação de rua, mas trabalha com âmbito de reflexão.
Além disso, segundo a Secretaria de Assistência Social, também há uma rede de apoio composta por sete acolhimentos institucionais, como o Centro Pop, onde Renilda pediu ajuda pela primeira vez.
Em Cariacica, segundo a Secretaria de Assistência Social (Semas), há uma população flutuante de 222 pessoas em situação de rua. O município também conta com um Centro Pop, com capacidade para 40 pessoas por dia, onde são disponibilizadas quatro refeições, além de espaços para higiene pessoal e a realização de cursos, oficinas e etapas do Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
Também há um espaço para acolhimento institucional (abrigo), sempre com vagas disponíveis, para pessoas adultas em situação de rua, com capacidade para 40 acolhimentos.
Na Serra, de acordo com a prefeitura, cerca de 942 pessoas estão em situação de rua, de acordo com dados de 2023. A Secretaria de Assistência Social informou que o município oferta oito serviços voltados ao referenciamento, atendimento e acompanhamento para pessoas em situação de rua.
As instituições são: Centro POP, Serviço Especializado de Abordagem Social, Casa LAR I (acolhimento para o público feminino), Casa LAR II (acolhimento para o público masculino), Abrigo 24 horas em Jardim Limoeiro, Abrigo 24 horas em Arco-Íris, Casa de Acolhida ao Migrante e Hospedagem Noturna.
Em Vila Velha, atualmente são 508 cadastrados como pessoas em situação de rua. A Secretaria de Assistência Social realiza um trabalho diário de abordagem, por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), em todas as localidades de Vila Velha em que há demanda.