Para onde vão os adolescentes que não são adotados?
Neste Dia Nacional da Adoção, 25 de maio, o Folha Vitória conhece a realidade dos jovens abrigados e o que está sendo feito para aqueles que não são adotados
D. tem 16 anos e é um menino amante das artes: gosta de ler, de escrever, assistir clipes musicais e sonha, um dia, entrar na faculdade de Letras e ter uma casa própria, com uma família. Adora conversar sobre vários assuntos ao mesmo tempo, mas, se for algo que ele não gosta, ele vai dizer: “esquece isso!”.
Com mais sete outros meninos, D. mora em uma Casa Lar na cidade de Vila Velha e tem o dia cheio de atividades. Ele precisa arrumar a cama, ir para a escola, fazer os deveres de casa, cuidar dos bichos e, então, está livre para as atividades de lazer.
Neste Dia Nacional da Adoção, celebrado no dia 25 de maio, o Folha Vitória conhece a realidade dos jovens abrigados e o que está sendo feito para aqueles que não são adotados.
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A casa tem paredes coloridas e um quintal grande com galinhas, cachorros e outros animais. Rodeada por árvores e plantas, tem até um campinho de futebol. Uma cozinha grande divide o espaço externo, com uma mesa cumprida de madeira.
Dentro da casa, os quartos têm beliches, a sala possui uma televisão grande e um aquário cheio de peixes. Tem uma estante com livros, jogos de tabuleiro e um computador. No corredor, retratos de dezenas de meninos que já moraram por ali.
"Eu gosto de ler, escrever, desenhar e costurar roupa para boneca, só não gosto de ficar à toa. Quero fazer faculdade de Letras e, enquanto eu estiver estudando, eu quero trabalhar. Quem sabe, também me casar e ter filhos", contou.
O futuro que imagina não está tão distante. Em breve, D. terá 18 anos e precisará dar os próprios passos em busca da independência. O sonho de ter uma família só dele ainda existe, mas os planos revelam uma realidade diferente: a construção de um futuro independente de ter pai ou mãe.
Quando os adolescentes não são adotados
No universo da adoção, muito é idealizado a adoção de bebês, na busca por tentar reproduzir a ordem natural da criação desde pequeno, passando por todas as fases de crescimento até a vida adulta.
Crianças maiores de três anos, adolescentes, grupo de irmãos e jovens com deficiência são perfis que, na maioria dos casos, ficam mais tempo nos abrigos. Dados do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) mostram que 86% das crianças disponíveis para adoção possui mais de oito anos
Para o coordenador da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (CEJA) do TJES, Helerson Silva, independente da adoção acontecer para um bebê ou para um adolescente, o que vai permitir que dê certo é o amor e a paciência.
“São muitos fatores para essa resistência. Por exemplo, as pessoas têm medo de adotar adolescentes porque acreditam que já tem a ‘cabeça feita’, mas não é assim. Dependendo do amor e da paciência, tudo é resolvido. Muitos sonham em adotar um bebê para passar todas as fases, mas com o adolescente, essas fases também vão acontecer”, explicou.
Dentro dos abrigos, ao completarem 18 anos, os jovens precisam seguir a vida de forma independente, se não for adotado ou se não puder viver em casa de parentes. Com o apoio do Estado, esses adolescentes começam a ser introduzidos no mercado de trabalho e, aos poucos, conseguem se manter — isto é, em alguns casos.
De Casa Lar para Casa República
Na Casa Lar em Vila Velha, mostrada nesta reportagem, a história fugiu um pouco da teoria e mudou o rumo para aqueles que alcançam a maioridade sem uma família adotiva.
Paulo Diniz é coordenador da casa e contou sobre essa dificuldade dos jovens se manterem sozinhos. Um dos adolescentes da casa, ao completar 18 anos, chegou a morar sozinho por alguns meses, mas ficou sem trabalho, sem dinheiro e sem casa.
“Todos os anos, no Natal, eu reúno todo mundo, os que já moraram aqui com os que ainda moram. Em 2018, eu fui procurar esse menino que morou com a gente durante cinco anos. Quando ele saiu, nós o ajudamos a comprar mobília, material para cozinha e tudo mais. Ele tinha um emprego, mas a empresa faliu e ele foi mandado embora. Então, começou a vender as coisas dentro de casa até ficar sem nada. Foi parar na rua. Quando eu procurei ele para o Natal, ele estava na rua, no meio de um monte de gente usando droga, perto do Terminal de Vila Velha. Era um garoto sem maldade e foi parar lá por circunstância da vida”, disse.
O impacto de ver o menino que morou anos na Casa Lar sem apoio nas ruas foi grande e fez crescer no Paulo a vontade de mudar essa realidade, de aliviar o processo brusco de um adolescente virar adulto. Uma forma de transição entre a vida no abrigo e a vida no mundo: a Casa República.
Em uma parte da garagem da Casa Lar foi construída uma nova casa. Um espaço limitado, com dois quartos, uma sala, área de serviço, banheiro e cozinha. A ideia é que os jovens que completarem 18 anos passem a morar nesse espaço, de forma mais independente.
Ou seja, terão, ainda, o apoio do abrigo, mas deverão cuidar da casa, fazer as compras e criar uma rotina de trabalho e estudos. Eles podem ficar na Casa República até completar os 21 anos.
"É dever do Estado e toda sociedade acompanhar para que esses adolescentes tenham uma passagem bem tranquila porque já sofreram bastante e, agora, precisam enfrentar as coisas sozinhos", completa Helerson Silva.
O espaço foi montado com ajuda de doações e arrecadação de recursos. Paulo foi contando a história para um, para outro... até conseguir levantar a Casa República. No ano passado, foi firmado um acordo de colaboração com a Prefeitura de Vila Velha, com o intuito de manter a casa.
"O termo de colaboração é uma modalidade para dar continuidade ao serviço, com o que a prefeitura tem a oferecer, como disponibilizar uma equipe técnica, cuidadores, educadores e ajudar na manutenção do serviço", informou a subsecretaria municipal de assistência social, Márcia Barcellos, ao Folha Vitória.
A independência que chega sem cerimônia
A realidade de quem passa anos esperando por uma família ao completar 18 anos é, muitas vezes, seguir em frente embarcando em uma viagem solitária. Logo na adolescência, eles são influenciados a buscar um estágio e cursos de capacitações para, em breve, se inserirem no mercado de trabalho para o próprio sustento.
Em março deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) firmou parceria com algumas empresas nacionais para viabilizar o emprego para jovens que moram em abrigos, por meio do Programa Nacional Permanente de Apoio à Desinstitucionalização de Crianças e Adolescentes Acolhidos e Egressos de Unidades de Acolhimento – Programa Novos Caminhos (PNC).
Empresas como o Banco do Brasil, a Petrobras, a Vale e a Eletrobras fizeram parte do acordo. O objetivo é oportunizar aos jovens acolhidos educação básica, superior e profissional, mesmo até 24 meses após desligamento das unidades de acolhimento.
No Espírito Santo, o TJES também firmou parceria com o Governo do Estado para capacitação dos jovens abrigados, utilizando o mecanismo que já é usado pelo programa Qualificar-ES, que oferece profissionalização gratuita e, em alguns casos, de forma on-line.
"A Corregedoria Geral de Justiça assinou um acordo com a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Informação e Educação Profissional (Secti), utilizando toda a estrutura existente do Qualificar-ES para ofertar aos adolescentes que estão nas instituições de acolhimento esses cursos profissionalizantes, como de manicure ou padeiro", explicou Helerson Silva.
Adoção tardia: a espera por uma família nunca acaba
A adoção tardia é um desafio e ainda com muita resistência dos futuros pais. Gabriela e Thiago Pita da Cunha já tinham dois filhos biológicos quando optaram pela adoção tardia de duas irmãs. A vontade começou após a pandemia de covid-19.
"Em 2021, durante a pandemia, comecei a trabalhar em hospitais na linha de frente da covid-19, como fisioterapeuta, e esse processo foi fundamental para minha escolha em ser mãe por adoção. Vi muitas coisas que me abalaram bastante e me veio o pensamento de quantas crianças órfãs haviam diante todo aquele cenário", contou Gabriela.
O casal, que já tinha os filhos Arthur e Lorenzo, ainda tinha o desejo de ter filhas. Foi quando Gabriela e Thiago conheceram duas irmãs, Heloísa e Isabelle, na época, de 11 e seis anos.
"Nosso processo de habilitação durou 1 ano e 2 meses e nesse período conhecemos as nossas filhas. Nós sentimos que eram elas. Foi um encontro perfeito. Após três meses de aproximação tivermos a guarda provisória e, depois de quatro meses, recebemos a sentença favorável. Em dezembro de 2023 já estávamos com as certidões em mãos e elas finalmente eram nossas", finalizou.
A realidade, porém, é diferente para D. na Casa Lar em Vila Velha, como foi mostrado no início da reportagem. Cada vez mais perto de completar a maioridade, ele, inconscientemente, já trabalha com a ideia de morar na Casa República até os 21 anos.
"Quando eu sair daqui, eu pretendo morar na Casa República, vou juntar um dinheiro para montar a minha casa e ter minhas coisas. Se não tivesse a Casa República, eu não teria um lugar para ficar, não tenho uma estabilidade, preciso de apoio", finalizou.
São para meninos como D., cheio de sonhos e que buscam uma família, que existe uma campanha no Espírito Santo voltado para a adoção tardia: o programa Esperando por Você.
No site do TJES, as crianças e adolescentes fazem vídeos contando sobre si, em busca de encontrar uma família. No programa, participa quem não teve pretendente encontrado nas buscas estaduais, nacionais e internacionais realizadas pela equipe da Comissão Estadual Judiciária de Adoção.
Apesar da procura ser menor, a quantidade de crianças mais velhas dentro dos abrigos é grande. Segundo dados do tribunal, das crianças acolhidas prontas para a adoção no estado, 86% possui mais de oito anos, 49% fazem parte de grupo de irmãos e 23% possui alguma necessidade especial.
No estado, atualmente são 115 crianças e adolescentes disponíveis para adoção. Somente neste ano, foram 40 adoções. Em 2023, foram 154 crianças adotadas. Ao todo, 722 pretendentes estão aptos para adotar.
Mais informações sobre adoção podem ser conferidas no site do Tribunal de Justiça do Espírito Santo ou do Conselho Nacional de Justiça. Aos interessados, a orientação é buscar a Vara da Infância e Juventude da cidade onde mora para outras orientações.
*A identidade do adolescente entrevistado, assim como o nome oficial da Casa Lar onde vive, foram preservados na reportagem, a pedido da coordenação do abrigo, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).