O Brasil já possui mais uma mulher na lista dos reconhecidos como santos pela Igreja Católica. A beata irmã Dulce tornou-se santa na manhã deste domingo (13), pelas mãos do papa Francisco, em uma missa celebrada na Praça São Pedro, no Vaticano.
Antes de receber o título de Santa, Irmã Dulce foi submetida ao rigoroso processo de canonização, instituído pela Igreja. Após sua morte, os inúmeros relatos de milagres atribuídos a ela pelos fiéis resultou na abertura do processo. Com um milagre comprovado, Irmã Dulce recebeu, primeiro, o título de beata. Após a comprovação do segundo milagre, ela agora passa a ser venerada pelos fiéis como santa, resultado de uma vida dedicada aos desvalidos, em nome da fé e do Evangelho.
Vida dedicada aos necessitados
Nascida em 26 de maio de 1914, em Salvador, na Bahia, a religiosa foi batizada como Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes. Era filha de uma dona de casa, Dulce, e de um dentista e professor da Universidade Federal da Bahia, Augusto. A pequena Maria Rita perdeu a mãe quando tinha somente 7 anos. Por isso, decidiu homenageá-la adotando o nome na vida religiosa, aos 19 anos, quando ingressou na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus.
Antes, porém, a vocação para ajudar os mais necessitados já se tornara pública na adolescência. Aos 13 anos, ela começou a acolher doentes e moradores de rua em sua própria casa. O centro de atendimento informal acabou conhecido como “a portaria de São Francisco”. Ela entrou para o convento em 15 de agosto de 1934, depois de lutar contra a resistência do pai, que traçara para ela o roteiro de todas as moças de classe alta da Bahia.
Logo depois de ingressar oficialmente na vida religiosa, Dulce tornou-se professora de uma escola mantida por sua congregação. Por formação, era normalista, oficial de farmácia e auxiliar de serviço social, ministrando aulas, principalmente de geografia e história. Irmã Dulce também gostava de artes, principalmente música. Em 1948 fundou o Cine Teatro Roma, palco de shows de grandes nomes da MPB, como Roberto Carlos e Raul Seixas. A religiosa ainda criaria dois cinemas em Salvador.
Insistente na missão de olhar para os mais necessitados, a religiosa criou um movimento operário cristão e, pouco tempo depois, fundou a organização que existe até hoje, com destaque para o atendimento a doentes. Ainda em vida, recebeu o apelido de ‘o anjo bom da Bahia’. “Miséria é a falta de amor entre os homens”, dizia a freira que, em 1988, foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz.
“O amor supera todos os obstáculos, todos os sacrifícios. Por mais que fizermos, tudo é pouco diante do que Deus faz por nós”, é outra de suas frases famosas.
Seus últimos 30 anos de vida foram especialmente difíceis por conta de um enfisema pulmonar, que reduziu sua capacidade respiratória em 70%. Irmã Dulce chegou a pesar apenas 38 quilos.
Ligação com João Paulo II
Em 7 de julho de 1980, quando o papa João Paulo II visitava o Brasil pela primeira vez, ele celebrou uma missa campal em Salvador e chamou Irmã Dulce para o altar. Abençoou-a, deu a ela um terço e disse: “continue, Irmã Dulce, continue”. Então com 66 anos, a freira baiana já apresentava a saúde debilitada.
Persistente, conhecida por muitos como teimosa, Irmã Dulce era hábil em aproveitar as oportunidades e obstinada. Ela soube manter boas relações com políticos e empresários para que seus trabalhos assistenciais fossem mantidos e só ampliassem. Em outubro de 1991, durante nova visita ao Brasil, João Paulo II foi visitar a freira no Convento Santo Antônio, onde ela já estava acamada. Foi ali que ela morreu pouco tempo depois, em 13 de março do ano seguinte, aos 77 anos.
Processo de Canonização
Na história contemporânea da Igreja, pelos trâmites de canonização vigentes, a canonização de Irmã Dulce é o terceiro caso mais rápido, sendo 27 anos de processo. O próprio João Paulo II tornou-se santo com apenas nove anos após a morte. O segundo caso mais rápido, que durou 19 anos após a morte, foi o de Madre Teresa de Calcutá.
Pelas regras da Igreja Católica, um processo de canonização só pode ser aberto cinco anos após a morte. No caso de Irmã Dulce, os procedimentos foram iniciados em janeiro de 2000, quase oito anos após o falecimento. Na ocasião, os restos mortais que estavam na Igreja da Conceição da Praia, em Salvador, foram transferidos para a Capela do Convento Santo Antônio, na sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), na mesma cidade. Em abril de 2009, o papa Bento XVI reconheceu as virtudes heróicas da religiosa. Irmã Dulce passou a ser considerada então venerável.
Primeiro milagre e beatificação
O primeiro milagre atribuído à Irmã Dulce, que levou à beatificação, agraciou uma mulher que não a conhecia antes do episódio. Claudia Santos, hoje com 50 anos, recuperou-se de uma grave hemorragia pós-parto, cujo sangramento foi subitamente interrompido.
Moradora do município de Malhador, no interior de Sergipe, ela deu à luz ao segundo filho em 2001. Após o parto normal, ela apresentou uma hemorragia incontrolável, que a levou à UTI. Os médicos realizaram todos os procedimentos possíveis, mas já havia poucas esperanças de salvar a vida da paciente. “Chegou um momento em que o médico falou para minha família que não tinha mais o que fazer, só aguardar o falecimento”, afirma.
A paciente foi então transferida para a capital do estado, Aracaju, onde recebeu a visita de um religioso de sua cidade. “Padre Almir foi me visitar e levou uma santinha, Irmã Dulce. Ele rezou e me entregou a santinha. Depois disso, foi cada dia uma melhora”, acrescenta Claudia. Segundo ela, nem o médico que realizou o parto acreditou quando a viu chegar ao hospital para uma revisão. Hoje, Claudia Santos é devota de Irmã Dulce e agradece sua vida à intercessão naquele momento.
Em 22 de maio de 2011, Irmã Dulce foi beatificada em missa presidida pelo cardeal dom Geraldo Majella Agnelo, em Salvador. Pelas regras do processo, após a beatificação, um segundo milagre deveria ser reconhecido. Vale ressaltar que para que um fato seja declarado milagre é preciso que haja pesquisas e comprovações científicas que, de certa forma, precisam atestar que não houve explicação médica para o fato.
Segundo milagre e anúncio da canonização
O segundo milagre, cujo reconhecimento pelo Vaticano ocorreu neste ano de 2019, foi a cura instantânea da cegueira do maestro José Maurício Moreira, atualmente com 51 anos, que convivia com a cegueira havia 14 quando ocorreu o que era considerado impossível. “Eu descobri que tinha glaucoma em 1992, com 23 anos. Tratei essa doença durante quase dez anos, mas não foi o suficiente porque, quando eu descobri, já tinha perdido muito do nervo óptico”, conta Moreira. Apesar de passar por alguns tratamentos, em 2000 estava completamente cego.
Foi em 2014, ao contrair uma conjuntivite com sintomas muito intensos, que o maestro fez um pedido a Irmã Dulce e recebeu muito mais do que esperava. “Em uma noite de muita dor e sofrimento, eu peguei uma imagem de Irmã Dulce, coloquei sobre os olhos e, com toda a fé que sempre tive, pedi que ela curasse minha conjuntivite. Não pedi para voltar a enxergar, os médicos já tinham dito que eu praticamente não tinha mais nervo óptico.” Algumas horas depois, ele foi capaz de ver as próprias mãos, e a ‘nuvem de fumaça’ que bloqueava seus olhos começou a se dissipar gradativamente.
O maestro ainda relata que houve ainda uma segunda surpresa, após a alegria de recobrar a visão. Ao se consultar com o médico que já cuidava da conjuntivite, ele foi informado de que nada havia mudado fisicamente. De acordo com os exames clínicos, ele continuava cego, já que o nervo óptico estava muito danificado. “Irmã Dulce era assim: se alguém pedisse a ela para subir dois degraus, ela já colocava a pessoa lá em cima na escada. Ela não fazia o bem pela metade, ia até o final”, acrescenta.
Com o reconhecimento do segundo milagre, em 14 de maio de 2019, o papa Francisco anunciou que Irmã Dulce seria canonizada. Agora oficializada Santa Dulce dos Pobres é a 37ª personalidade brasileira a receber o grau da canonização.
Desde o anúncio de que ‘o anjo bom da Bahia’ se tornaria santa, o número de visitantes do memorial dedicado a ela, em Salvador, aumentou em, pelo menos, cinco vezes. Por mês, cerca de 15 mil pessoas vão até o local.
Obra Social Irmã Dulce
Para muitos, o maior milagre de Irmã Dulce tem muito mais de árduo trabalho humano do que de forças divinas. Em 1959, a freira fundou uma instituição filantrópica em Salvador. A Obra Social Irmã Dulce (Osid) é um complexo composto de 17 núcleos, com uma gama de serviços gratuitos que vão de escola de ensino integral a hospital com tratamento de câncer.
O centro médico atende a 2 mil pessoas por dia. Anualmente, são realizados ali 2 milhões de procedimentos, com 12 mil cirurgias e 18 mil internações. Tudo de graça. O complexo realiza 3,5 milhões de atendimentos por ano.
Paulo Coelho
Ao longo da história de atendimento aos necessitados, um dos que foram atendidos foi o escritor Paulo Coelho. /a uma semana da canonização, ele publicou nas redes sociais alguns trechos de sua biografia, em que revela que foi ajudado pela religiosa em um momento de necessidade.
“Estava passando fome, doente, perdido em Salvador. Tinha fugido de um sanatório psiquiátrico onde fora internado por meus pais, desesperados para controlar o filho rebelde”, conta Paulo Coelho, na biografia O Mago, de Fernando Morais.
Na recente lançada Biografia de Irmã Dulce, há relatos sobre o escritor. O então jovem perdido em Salvador, após ter fugido de um hospital psiquiátrico no qual fora internado pelos pais, recorreu a Irmã Dulce, que o ouviu e, sem nada perguntar, escreveu: “Vale um bilhete de ônibus”, e assinou. “O primeiro motorista que leu o que estava no papel mandou que eu embarcasse.”
No dia 5 deste mês, o escritor compartilhou em suas redes sociais um recibo bancário, na qual mostrou a doação de cerca de R$ 1 milhão destinados às Obras Sociais Irmã Dulce. A atitude foi seguida de críticas e elogios de internautas.
Paulo Coelho justificou a divulgação da doação por estar indignado com o que chamou de “falta de vergonha”. Ele repudiou, em suas redes sociais, os gastos do governo federal com a comitiva oficial. De acordo com Coelho, o governo deveria empenhar esse recurso para apoiar a causa dos pobres, como ele mesmo fez.
Fãs do escritor demostraram apoio e admiração. “Parabéns pela doação, Paulo. Conheci a Irmã Dulce e a sua obra. Não sei de pessoa alguma que merecesse mais do que ela a graça da santificação”.
Presidentes
“Eu sou indigno de fazer outra coisa, senão lhe beijar os pés”, disse Sarney em 27 de maio de 2014, durante sessão solene do Senado em homenagem ao centenário de nascimento de Irmã Dulce. Em 4 de junho deste ano, repetiu a declaração em entrevista ao autor da biografia. Amiga de Sarney, era a única pessoa, fora do governo, que tinha o número do telefone vermelho no gabinete do Palácio do Planalto. Irmã Dulce acionou o número muitas vezes.
Ainda de acordo com a obra que conta a vida da religiosa, o presidente Eurico Gaspar Dutra prometeu 6,5 milhões de cruzeiros, o equivalente a R$ 12 milhões atuais, para concluir as obras sociais de Irmã Dulce por meio do Círculo Operário da Bahia (COB), com garantia do Banco do Brasil. Como o dinheiro não chegou, Irmã Dulce cobrou o prometido quando o presidente voltou à Bahia. Ele pediu ao ministro da Educação, o banqueiro baiano Clemente Mariani, para atender a freira.
Já o presidente João Batista Figueiredo, ao visitar Salvador, ficou emocionado ao ver a precariedade do Hospital Santo Antônio e prometeu ajudar Irmã Dulce. A promessa foi cumprida 30 meses depois, em março de 1982, quando a freira reencontrou o presidente. “Já falei com Santo Antônio e ele me disse que o senhor só entra lá no céu se nos ajudar na construção do novo hospital”, disse a freira.
“Eu vou arranjar o dinheiro para a senhora, nem que eu tenha de assaltar um banco”, respondeu Figueiredo. “Pois o senhor me avise, que vou com o senhor”, pediu Irmã Dulce. Figueiredo deu uma gargalhada. O Ministério do Planejamento liberou 50 milhões de cruzeiros na semana seguinte (cerca de R$ 4,5 milhões) e quantia igual um ano depois, transferida pelo Fundo de Investimento Social.
Irmã Dulce recebeu o título de santa neste domingo (13). Junto com ela, foram canonizados os beatos: Cardeal John Newman, da Inglaterra; Madre Giuseppina Vannini, da Itália; Maria Teresa Chiramel Mankidiyan, da Índia; e Margarida Bays, da Suíça.
*Com informações da Agência Estado.