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Enem: estudante do ES descobre que prova em Libras teve questões diferentes do caderno geral

Segundo a aluna, que fez a prova pela primeira vez, as questões divergentes abordaram temas polêmicos e ideológicos, como machismo e feminismo

Rodrigo Araújo , Marcelo Pereira , Gabriel Barros , Iures Wagmaker

Redação Folha Vitória
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) geralmente é dividida em seis cadernos, de cores diferentes — azul, branca, rosa, amarela, laranja e verde. Porém, as questões são as mesmas em todas as versões. A diferença é a ordem em que elas são colocadas — justamente para evitar que haja cola entre os candidatos e outros tipos de fraude.

Entretanto, no exame deste ano, aplicado no primeiro dia de provas, no último domingo (21), o caderno verde, direcionado aos estudantes com deficiência auditiva, continha cinco questões que não estavam nas demais versões. 

As questões que só apareceram nesta prova verde abordam assuntos de caráter ideológico e sensíveis ao atual governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), como igualdade racial, o papel da mulher na sociedade e queda do patriarcado.

A descoberta foi feita pela estudante da escola Monteiro, Mariana Chagas Barbosa Rezende, 17 anos, de Vitória. Ele fez o Enem pela primeira vez, como treineira, e alertou seus professores. 

Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

"No dia seguinte da prova, eu procurei na internet algum gabarito extraoficial, mas só encontrei dos outros cadernos. Aí encontrei em um site um caderno escaneado. Então, eu fui corrigindo questão por questão e vi que cinco questões da minha prova estavam diferentes. Quando cheguei em casa, confirmei com o caderno em mãos", disse.

Ao perceber a divergência, a estudante entrou em contato com um professor. "Eu contatei o professor Paulo Vitor Scherrer, que eu sabia que tinha muito conhecimento sobre isso, e ele concordou com o meu estranhamento. Ele também me aconselhou a procurar a mídia, pois conseguir alguma resposta diretamente do Inep ou do Minstério da Educação seria muito difícil. Meus pais também me aconselharam a fazer a mesma coisa", contou.

Mariana também registrou, formalmente, uma queixa ao Inep, por e-mail. No relato enviado à instituição, ela descreveu o fato e como foi observado. Segundo ela, também contatou o instituto por telefone e falou com uma atendente, que disse ser normal a mudança de questões entre provas.

Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal

"Achei muito estranho. Isso nunca tinha acontecido na prova de Linguagens. As questões da minha prova pareciam até mais complexas para justificar uma mudança para a adaptação em Libras. As questões também têm um teor 'ideológico', como o governo Bolsonaro gosta de caracterizar. Creio que essas sejam algumas das questões que pediram que fossem retiradas. Acho que o principal problema de tudo isso é a quebra de confiança que causa entre os estudantes e o Inep. Não tem mais como saber se existe uma responsabilidade e uma segurança adequadas para a avaliação", avalia.

Agora, a estudante teme que sua nota na prova possa ser prejudicada.

"À princípio, achei que não prejudicaria a minha nota, até porque questões diferentes podem ser usadas para o mesmo Enem, como a replicação para PPL (pessoas privadas de liberdade). Mas um professor meu me avisou que as questões aparentam ser mais difíceis e podem vir a prejudicar uma TRI (Teoria de Resposta ao Item) adequada", disse Mariana.

Inep alega adequação para o público

Por meio de nota, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do Enem, alegou que alguns itens utilizados para elaboração das provas regulares podem não ser adequados para o público com deficiência (veja a nota na integra no final da reportagem). 

No entanto, todas as questões, em todas as versões da prova, mesmo as em libras, são em geral de interpretação de texto, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. 

O Inep disse ainda que a Teoria de Resposta ao Item (TRI), utilizada para a elaboração do exame e para o cálculo das proficiências dos candidatos, permite a troca de itens sem que as provas percam a comparabilidade entre si, pois as questões são substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade.

Professor acredita que prova foi alterada

Entretanto, o professor e diretor da Gama Pré-vestibular, Paulo Victor Scherrer, acredita que essas questões diferentes, encontradas no caderno verde, podem indicar que o Inep havia elaborado uma primeira versão da prova que, por algum motivo, foi alterada.

Ele ressalta ainda que, dessas cincos questões encontradas apenas no caderno verde, quatro abordam assuntos de caráter ideológico e sensíveis ao atual governo, como igualdade racial, papel da mulher na sociedade e queda do patriarcado. A outra questão, segundo o professor, pode ter sido suprimida dos outros cadernos por motivos técnicos, por não estar perfeitamente legível.

“Como as provas para deficientes auditivos são aplicadas para pouquíssimos alunos, creio que possam ter esquecido de alterá-las. Das cinco questões diferentes das demais provas, quatro se enquadram em conteúdos que, teoricamente, o governo se opõe", ressaltou o diretor da Gama Pré-vestibular, que neste ano, em parceria com o Folha Vitória, preparou uma série de lives e materiais com listas de exercícios, para ajudar os estudantes a se prepararem para o Enem. 

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Paulo Victor conta que identificou a diferença entre as provas a partir de uma questão trazida pela aluna deficiente auditiva, que notou que a prova dela tinha questões diferentes das demais.

Ele explica, no entanto, que o fato não justificaria um possível recurso, pedindo a anulação do exame, por exemplo, uma vez que não há nenhum dispositivo legal que impede o Inep de colocar questões diferentes nos cadernos. 

"O critério de correção do Enem leva em consideração o nível de dificuldade das questões. Para cada tipo de questão, é atribuído um peso diferente. Então, o simples fato de ter questões diferentes não inviabiliza o exame, uma vez que elas podem ser enquadradas no mesmo nível de dificuldade", explicou.

Professora analisa questões diferentes encontradas em caderno verde do Enem

A reportagem do Folha Vitória entrou em contato com a professora de língua portuguesa e redação Monica Regina Souza, para saber a opinião dela sobre essa diferença do caderno verde para os demais.

Monica Regina, que já trabalhou na aplicação do Enem, disse que nunca viu algo do tipo e que geralmente as provas são adaptadas para outras situações.

"Não faz nenhum sentido você pensar que, segundo eles, as questões das provas regulares podem ser substituídas caso algum item não seja adequado para o público. O que não seria adequado? Não consigo entender. Nunca vi isso na vida. Algum item não ser adequado? Ah, então eu não vou questionar o público com necessidades especiais, não vou tratar desse assunto. Que assunto? Necessidades especiais, por que não? Acessibilidade, por que não?", questiona.

"Quando eu apliquei (o Enem), eu tive um caso só, de uma menina que tinha problema de visão. Mas a prova dela só era expandida, num formato 2 a 3, grandona, como um cartaz. Mas era a mesma prova", completou.

Sobre as questões que constavam apenas no caderno verde, a professora afirma que gostou da forma como elas foram elaboradas e acredita que o governo federal pode ter sim interferido para que elas não estivessem nos demais cadernos.

"Elas guardam, em si, uma grande similaridade com o objeto de análise, que é questionar a nossa sociedade, chamar a atenção para a reflexão acerca da escravidão, falar sobre a mulher principalmente. Elas não são iguais, mas, em termos de temática, se assemelham com as aplicadas nos cadernos da maioria dos alunos", frisou.

"Eu acredito que tenha havido sim uma mudança em relação ao que o governo gostaria que fosse tratado no Enem. (As questões) em nada se assemelham com aquilo que a gestão maior gostaria de ver, porque são questões bastante reflexivas. Apesar de me incomodar, porque a gente não vê nada disso mudar, mas é um assunto que precisa ser recorrente e discutido. Eu, particularmente, gostei das questões", acrescentou Monica Regina.

Confira a nota do Inep, na íntegra, sobre o assunto:

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) utiliza a Teoria de Resposta ao Item (TRI) para elaboração das provas e cálculo das proficiências dos participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Diferentemente de uma prova comum, a nota do Enem em cada área não representa simplesmente a proporção de questões que o estudante acertou na prova. Em cada uma das quatro áreas avaliadas, a média obtida depende, além do número de questões respondidas corretamente, também da dificuldade das questões que se erra e se acerta, bem como da consistência das respostas.

Alguns itens utilizados para elaboração das provas regulares podem não ser adequados para o público com deficiência. As questões podem ter, por exemplo, algum tipo de imagem ou suporte que impossibilita a descrição para o participante, por ficar muito extensa ou até por apresentar a resposta correta do item. Também pode ocorrer de questões da videoprova em Língua Brasileira de Sinais (Libras) não estarem adequadas para o público surdo ou com deficiência auditiva. Nesses casos, os itens podem ser substituídos para a prova adaptada. O objetivo é proporcionar o atendimento especializado com garantia de isonomia entre todos os participantes.

A TRI permite a troca de itens sem que as provas percam a comparabilidade entre si, pois as questões são substituídas por outras com o mesmo grau de dificuldade. Além disso, o gabarito não é alterado, no intuito de facilitar a divulgação do arquivo final com as respostas corretas de cada item.

Enem 2021 é marcado por polêmicas e pedido de demissão em massa

Antes mesmo da aplicação de todas as provas, o Enem 2021 vem sendo cercado de polêmicas, devido a suspeitas de uma possível interferência do governo federal no conteúdo da prova. 

A suspeita ganhou mais força depois que o presidente Jair Bolsonaro declarou, no último dia 15, que o Enem começava a ter "a cara do governo".

Dias antes, 35 servidores do Inep, ligados ao exame, pediram exoneração dos cargos, acusando o governo federal de pressioná-los para mudar perguntas. Além disso, os profissionais relatam falhas na segurança do material.

Para garantir a segurança do Enem e a lisura do processo seletivo, um núcleo constituído por 12 pessoas, servidores técnicos do Inpe, criam a prova.

Uma vez elaborada, antes de ser impressa, a prova passa por um servidor comissionado, responsável por fazer uma avaliação técnica, no sentido de verificar se faltam questões, páginas e outras conferências meramente técnica.

TCU vai investigar possíveis irregularidades no Enem

Após representação de deputados da oposição, o Tribunal de Contas da União abriu um procedimento para apurar "possíveis irregularidades" na organização do Enem 2021, "especialmente acerca de fragilidade técnica e administrativa relacionadas às interferências na gestão do Inep". 

O caso está sob relatoria do ministro Walter Alencar Rodrigues e foi autuado no último dia 17.

A abertura da investigação se deu após uma reunião entre parlamentares e a presidente da corte de contas, Ana Arraes, no dia anterior. O tribunal diz que a abertura de processo após o recebimento de representação de parlamentares — como ocorreu no caso — é um procedimento padrão para análise do que foi solicitado.

Bolsonaro sugere questões mais 'objetivas' e perguntas sobre a ditadura

Na quarta-feira (24), em um evento em homenagem a escolas cívico-militares, Jair Bolsonaro voltou a criticar o exame. O presidente disse que, se pudesse interferir, a prova do último domingo teria mais questões "objetivas".

Além disso, sugeriu que gostaria que a prova tivesse perguntas sobre a ditadura militar — mas sem discutir se o período foi ou não uma ditadura.

"Se eu pudesse interferir, pode ter certeza, a prova estaria marcada para sempre com questões objetivas de fato, não com questões ideológicas, como as que ainda vimos nessa prova", disse Bolsonaro.

Ao mesmo tempo em que nega interferência no teste, Bolsonaro falou que, pouco tempo atrás, no Enem, havia questões que "não tinham nada a ver", mas que, aos poucos, "estamos mudando isso".

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