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ARTIGO | Ninguém nasce racista: uma reflexão no Dia da Consciência Negra

É primordial um esforço de todas as partes para que os indivíduos e as nações não sejam direcionados a discursos segregadores, enxergando o outro como inferior

Redação Folha Vitória

Redação Folha Vitória
Foto: Freepik
*Artigo escrito por Sara Peixoto Arivabene, advogada

O dia 20 de novembro surgiu como uma ideia para (re)memorar as conquistas e lutas do povo negro no Brasil, na década de 1970, sugestionada pelo poeta e professor gaúcho Oliveira Silveira no seio do Grupo dos Palmares, que simbolizava não só a importância histórica dos acontecimentos, mas, também, o protagonismo negro, simbolizado pela liderança e luta exercida por Zumbi de Palmares, considerado herói nacional por lei desde 1997.

Mas o que uma mulher branca de classe média que teve acesso a uma educação de qualidade em um país tão desigual tem a dizer sobre esse dia?

Apesar das pertinentes reflexões sobre “lugar de fala” promovidas pela filósofa, pesquisadora e escritora Djalma Taís Ribeiro dos Santos, presente na lista da BBC entre as 100 mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo, a perspectiva branca privilegiada em um país, em cujo passado recente a pele negra era comerciável e objetificada de todas as formas e sem qualquer pudor ou constrangimento, representa um dever e também uma perspectiva baseada na empatia e da (tão necessária) tentativa humana de atingimento da realidade do outro, a famigerada alteridade.

Afinal, quando criança, a ideia de segregação, racismo ou qualquer tipo de exclusão social, são conceitos tão abstratos quanto incompreensíveis. Todas essas questões tão urgentes e complexas não fazem muito sentido para o olhar “cru” e fresco de uma criança.

Só a partir de um amadurecimento é que as pessoas são capazes de começar a visualizar as injustiças. Afinal, ninguém nasce racista, por isso é primordial um esforço de todas as partes para que os indivíduos e as nações não sejam direcionados a discursos segregadores, enxergando o outro como inferior ou diferente. Para que, então, não haja qualquer tipo de doutrinação nesse sentido, levando a um ódio sem nenhuma razão.

Como advogada, é praticamente impossível um olhar sobre a questão alheio às vicissitudes do Direito. 

Surge, assim, um convite a uma reflexão sobre o papel do Direito nas tramas sociais, já que não é novidade que a escravidão foi simbolicamente abolida no Brasil por uma lei (Lei Áurea assinada em 13 de maio de 1988). No final, tudo remete ao Direito, o começo também.

A necessidade do Direito e da regulação da vida em sociedade (per)passa por um senso de organização e segurança e se antes com os governos absolutistas as normas advinham de governantes escolhidos por Deus, de base então teológica, com o advento do Estado Moderno, com as revoluções liberais burguesas no ocidente nos séculos XVII e XVIII, especialmente a inglesa, francesa e americana, as regras passaram a advir de uma legitimação do poder.

Foto: Acervo pessoal
Sara Peixoto Arivabene é advogada

O poder, então, passa a vir do povo e para o povo. Mas é claro que “povo” excluiu e ainda exclui muita gente dos avanços e participação sociais.

E em que pese em nossa Constituição de 1988, elencar como um dos seus objetivos promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, a igualdade tem sido encarada até pouco tempo como algo meramente formal, ou uma mera exortação, mera folha de papel.

Foi com a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, julgada somente em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que foi afirmada a constitucionalidade das cotas raciais para a entrada em universidades federais. 

E só a partir daí que, realmente, o país foi levado a refletir sobre algo tão escancarado quanto ignorado, nas palavras do ministro Joaquim Barbosa, estudioso de ações afirmativas com livros sobre o tema, “a discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as pessoas nem percebem. Ela se torna normal. Essas medidas visam combater não somente manifestações flagrantes de discriminação, mas a discriminação de fato”.

O ministro disse também em seu voto que é natural que ações afirmativas “atraiam resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários”.

Após tantos anos, e com o avanço e o surgimento inegável das tecnologias, que pareciam inconcebíveis a décadas atrás, é hora de transformar também o Direito e a Constituição, que ainda se mostra atual e necessária em instrumentos de libertação, concretização de direitos e de afirmação dos valores constitucionais que escolhemos como sociedade.

É hora de enfrentar as complexidades e, principalmente, essa herança de segregação que ainda causa muitos estragos e, assim, reescrever a história para que a herança das futuras gerações seja mais compreensível para as crianças, que com o seu olhar fresco não precisarão ser expostas a uma complexidade sem sentido como é o racismo e suas pautas ideológicas.

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