Infância nas ruas: 180 crianças e adolescentes vivem nas ruas do ES
Especialistas apontam que a falta de articulação eficaz entre os diversos órgãos de assistência social, saúde e educação ainda é um dos maiores desafios
“Dizem que nossa nação não vai mal porque o povo ainda faz carnaval. E eu queria somente lembrar que milhões de crianças sem lar não partilham da mesma visão. Menores abandonados, alguém os abandonou, pequenos e mal amados o progresso não os adotou.”
A música “Menores Abandonados”, composta no início dos anos 1980 por Padre Zezinho, denuncia a problemática das crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil.
Passados mais de 40 anos, a crítica social na música ainda tem lugar nos dias atuais. Basta circular rapidamente pelas ruas da Grande Vitória para notar a vulnerabilidade desse grupo.
No Espírito Santo, por exemplo, um mapeamento realizado pelo Ministério Público do Estado (MPES) entre dezembro de 2023 e fevereiro de 2024 revelou que a população em situação de rua soma 6.927 pessoas, das quais 179 são crianças e adolescentes.
Na Serra, segundo o painel do MPES, há 135 crianças e adolescentes em situação de rua. Já o município diz que o número está errado e que moram na rua apenas três crianças, enquanto que outras 111 estão em situação de trabalho infantil no município, segundo levantamento referente ao primeiro semestre de 2024.
Segundo a Secretaria de Assistência Social da Serra (Semas), apesar de estarem em situação de trabalho infantil, essas crianças são domiciliadas e monitoradas pelo Sistema Especializado em Abordagem Social (Seas) da prefeitura (leia na íntegra, no final da matéria, sobre como funcionam os serviços na cidade).
Segundo a coordenadora de Abordagem Social da Serra, Nathalia Polezi Dalmasio, entre os fatores que contribuem para essa situação estão: a pobreza, o desemprego, o racismo estrutural, a busca das famílias por oportunidades de emprego em outras localidades e o uso de substâncias psicoativas.
Nathalia destaca que há um perfil predominante entre as crianças em situação de rua, com características específicas em relação à idade, sexo e histórico familiar:
- 76,3% das crianças estão em situação de trabalho infantil;
- 91% são negras (pretas ou pardas);
- 64,9% têm idade entre 12 e 17 anos;
- 77,2% são meninos.
Muitas dessas crianças vêm de famílias desempregadas e/ou sem moradia digna. Esses dados revelam a vulnerabilidade extrema e os múltiplos fatores que contribuem para essa realidade, evidenciando uma interseção entre desigualdade social, falta de oportunidades e a violação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes.
A precariedade das condições e a falta de acolhimento
Com relação ao atendimento, o município da Serra conta com parcerias com organizações da sociedade civil para oferecer 130 vagas de acolhimento institucional para crianças e adolescentes em situação de rua.
No entanto, a demanda é muito maior que a oferta, e o município enfrenta desafios para garantir que todas as crianças em situação de vulnerabilidade recebam o acolhimento necessário.
A abordagem social é feita por uma equipe composta por assistentes sociais, educadores e psicólogos, que percorrem os espaços públicos para identificar casos de abuso e exploração sexual de menores.
As crianças em situação de rua podem ser encaminhadas para serviços de acolhimento institucional, desde que o Conselho Tutelar e o Juizado da Infância e Juventude deem a autorização. Contudo, o número de vagas e a falta de recursos estruturais são barreiras que limitam a efetividade dessa ação.
Nathalia Dalmasio destacou que a cidade realiza campanhas de sensibilização, como aquelas voltadas ao enfrentamento do trabalho infantil nas feiras livres, em parceria com o Ministério Público do Trabalho.
"Por meio das atividade territoriais de mapeamento, rodamos todo o território municipal onde estes profissionais se aproximam da criança ou do adolescente, se apresentam como serviço público na perspectiva de garantia de direitos e através da pedagogia social de rua, fazemos a escuta desta criança, orientamos sobre os programas sociais, projetos e serviços da rede", relata a coordenadora.
As campanhas realizadas procuram sensibilizar a sociedade sobre o papel de todos na proteção das crianças e adolescentes, com o suporte contínuo das redes socioassistenciais.
A realidade nas cidades de Vila Velha, Vitória e Cariacica
Embora a realidade de crianças em situação de rua não seja predominante na Região Metropolitana da Grande Vitória, as prefeituras têm adotado políticas públicas para proteger as crianças e evitar que elas sejam expostas a situações de risco.
Segundo o mapa do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), feito entre dezembro de 2023 e fevereiro de 2024, há registro de apenas duas crianças em situação de rua em Vila Velha.
A prefeitura diz que realiza monitoramento contínuo da cidade através do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI).
A identificação de crianças e adolescentes em situação de risco é feita por meio de ações de busca ativa, com o apoio de órgãos como o Conselho Tutelar, o CRAS e o Creas.
Em Vitória, a situação de rua é identificada por meio de equipes psicossociais que realizam o monitoramento das feiras livres e territórios, além de contar com os serviços do Fala Vitória (156), Disque 100 e demais canais de denúncia.
A Prefeitura de Vitória atua em parceria com órgãos como o Conselho Tutelar e o Ministério Público para garantir que as crianças e adolescentes não sejam expostos a situações de vulnerabilidade, como o trabalho infantil e a situação de rua.
Segundo o mesmo mapa do MPES, Vitória também registra apenas duas crianças em situação de rua no mesmo período.
Já em Cariacica, o mapa do Ministério Público mostrou que não há registro de crianças em situação de rua. O município oferece serviços por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), voltados ao atendimento de famílias e indivíduos em situação de risco social ou que tiveram seus direitos violados.
Segundo o Ministério Público, o número de crianças e adolescentes em situação de rua, sem vínculos familiares, tem aumentado, e muitos são vítimas de violação de direitos.
A Justiça e o MPES têm trabalhado para garantir que esses menores sejam inseridos em programas de proteção, e, quando possível, em processos de reintegração familiar ou, em casos extremos, encaminhamento para adoção.
O que acontece com as crianças após a abordagem?
Segundo a promotora de Justiça Valéria Barros Duarte de Morais, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) tem um papel fundamental na articulação com a rede de proteção para garantir os direitos das crianças em situação de risco.
"Em relação às crianças em situação de rua, o Ministério Público atua em conjunto com a rede de proteção para garantir a proteção integral dessas crianças e adolescentes. Quando uma criança ou adolescente é identificada nessa situação, a prioridade é sempre assegurar a convivência familiar, que é um princípio fundamental da nossa Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente."
O Ministério Público trabalha com o Centro Pop e outras instituições para tentar resolver a situação, oferecendo apoio à família para que ela possa sair da rua e retomar a convivência com seus filhos.
Caso não seja possível, a busca por um familiar extenso é realizada, e, quando isso também não é viável, a criança pode ser encaminhada para um acolhimento institucional.
"O Ministério Público, junto à equipe da rede de proteção, continuará buscando a reintegração familiar. A destituição do poder familiar é uma medida de exceção, tomada apenas quando não há possibilidade de reintegração e a criança está em risco. No entanto, o número de crianças e adolescentes em situação de rua não é significativo, sendo casos mais raros."
O Ministério Público busca, sempre que possível, garantir que as crianças e adolescentes permaneçam com suas famílias, promovendo a reintegração familiar ou, em casos extremos, com a destituição do poder familiar para que a criança seja encaminhada para adoção.
Porém, a promotora destacou que a ocorrência de crianças em situação de rua não é expressiva, sendo uma situação rara na região.
Integração entre as políticas públicas
O Governo do Estado, por meio da Secretaria de Direitos Humanos, tem se destacado na execução de programas de proteção, como o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), que, em 2023, recebeu menção honrosa pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.
O programa visa a proteção de crianças e adolescentes ameaçados de morte, principalmente em áreas de risco, e é um exemplo de ação interinstitucional para combater a violência contra menores.
Entretanto, especialistas apontam que a falta de articulação eficaz entre os diversos órgãos de assistência social, saúde e educação ainda é um dos maiores desafios.
O cenário exige ações coordenadas entre as prefeituras, o governo estadual, o Judiciário e o Ministério Público. A Prefeitura da Serra, por exemplo, está ampliando seus serviços de abordagem social, incluindo a construção de novos espaços de acolhimento e o fortalecimento do Creas.
A Secretaria de Assistência Social informou que tem o compromisso com o cuidado e a garantia de direitos de crianças e adolescentes que enfrentam situações de vulnerabilidade social no município.
"Em casos onde não há possibilidade de convivência familiar, essas crianças são acolhidas em abrigos, onde recebem assistência integral até que o Poder Judiciário analise e defina as medidas específicas. O Conselho Tutelar desempenha um papel essencial nesse processo, atuando na proteção imediata das crianças e na articulação com as redes de apoio e serviços", ressalta a prefeitura, por meio de nota. A Serra possui cinco regionais do Conselho e 12 serviços de acolhimento para crianças e adolescentes.
A integração entre as políticas públicas e a criação de programas mais abrangentes são essenciais para dar uma resposta mais eficaz à situação.
Além disso, programas de reintegração familiar, quando possível, e a erradicação do trabalho infantil são algumas das principais ações.
Mas o problema é complexo e multidimensional, envolvendo questões estruturais profundas, como a desigualdade social, a violência doméstica, a falta de moradia e a exclusão social.