Bailarinos capixabas superam preconceito e fazem sucesso até no exterior
Muitas pessoas não sabem, ou esquecem, é que o ballet clássico começou na Europa, há cerca de 500 anos, com os homens da corte. Apenas eles podiam dançar
Para muitos brasileiros a dança, principalmente o ballet clássico, ainda é taxada como “coisa de menina”, e que homens não deveriam praticar. Em meio a essa realidade, muitos jovens acabam desistindo do próprio sonho por falta de apoio da sociedade, dos amigos e da própria família. Mas o que muitos não sabem, ou esquecem, é que tudo começou na Europa, há cerca de 500 anos, com homens. Isso mesmo, apenas homens da corte podiam dançar. E as mulheres apareceram só no fim do século 17, mas sem muitos papéis de destaque. Hoje essa realidade mudou, e são eles a minoria.
E foi lutando contra o preconceito que bailarinos capixabas conseguiram alcançar o seu espaço não só no Espírito Santo, como em outros estados e até fora do país. É o caso do estudante João Pedro Mattos Menegussi, de 17 anos. Ele começou a dançar com cinco anos e foi muito incentivado pelos pais. “Comecei a dançar após assistir às aulas de ballet da minha irmã. Meu pai percebeu que eu havia me interessado, e me perguntou se eu gostaria de tentar. Eu aceitei e nunca mais parei”, afirmou.
No último mês João Pedro foi um dos finalistas da competição Prix de Lausanne, que aconteceu em Lausanne, na Suíça, onde ele mora há dois anos. "Não estava esperando chegar às finais, mas consegui. Foi incrível. Foi uma semana de muito trabalho, várias aulas e ensaios. Tiveram dias que eu sentia tanta dor muscular que eu não conseguia nem andar direito sem antes me alongar. Trabalhamos com coreógrafos famosos, conhecemos e conversamos com diversos diretores de companhias de todo o mundo", contou.
"É difícil sim quando se é uma criança, mas se você for se importar com tudo o que as pessoas falam, você deixa de viver", diz João Pedro
Antes de se mudar, o estudante participou de competições no Brasil e também nos Estados Unidos. "Eu participei do YAGP, uma competição que acontece em Nova York. Lá sempre tem uma aula em que vários diretores de escolas e companhias assistem e oferecem bolsas. O meu atual diretor estava lá e me ofereceu uma bolsa de estudos completa. Nunca havia morado longe dos meus pais e fora do país, mas valeu a pena. Acho que um dos pontos positivos foi o desenvolvimento da minha carreira e preparação para entrar no mundo profissional da dança, além do amadurecimento pessoal, já que vim sozinho com 15 anos".
Mas antes de viver longe da família, não foi fácil seguir o caminho em meio ao preconceito. "Meus pais sempre me incentivaram e me apoiaram para eu seguir meus sonhos. Isso também foi muito importante. No Brasil a gente vê muito preconceito, mas aqui é diferente. Aqui as escolas de ballet têm muitos homens. O preconceito não existe. Já passei por várias situações chatas no Brasil. Sofri muito na minha infância, mas quando gostamos do que fazemos, isso é só uma pedrinha no meio do caminho. É difícil sim quando se é uma criança, mas se você for se importar com tudo o que as pessoas falam, você deixa de viver a sua vida".
Com muitos planos e sonhos, João Pedro disse que pretende seguir a carreira de bailarino. "Quando estou dançando, me sinto feliz. É uma sensação de muito bem estar. Quando estamos no palco podemos ser quem quisermos, e sabemos que aquele é um momento só nosso. Só pretendo parar quando o meu corpo não me permitir mais. Agora tenho alguns contratos em mãos e estou vendo para onde vou. Meu maior sonho hoje é ter uma carreira bem sucedida, com muito trabalho e paixão pela frente", disse.
“A dança é o que sou”
Há quatro anos morando fora do país, o bailarino Gustavo Ribeiro, de 20 anos, iniciou a sua carreira ainda criança. “Eu sempre participei das programações culturais da escola. Aos 10 anos, a prefeitura da minha cidade lançou um projeto com o objetivo de tirar as crianças das ruas e introduzi-las na arte. Participei desse projeto por dois anos. Em uma das apresentações, uma vizinha me apresentou o ballet. Na mesma semana fiz uma aula experimental e a diretora da escola me ofereceu uma bolsa. Através disso, tive oportunidade de me apresentar em festivais de dança estaduais, nacionais e internacionais”, contou.
E foi se apresentando ele recebeu bolsa de estudos para participar de uma das melhores escolas de ballet dos Estados Unidos. “No fim desse ano completará quatro anos que moro fora. Estudei e me formei como bailarino clássico no The Washington Ballet, nos EUA. Em janeiro de 2015, eu estava me programando para fazer uma bateria de audições para grandes companhias americanas e do Canadá. Mas, logo na primeira audição, recebi um contrato para ingressar no Alberta Ballet, a segunda melhor companhia do Canadá. Como aventureiro, decidi aceitar o contrato e viver uma nova experiência”, destacou.
"É uma pena que o ballet ainda seja associado a uma coisa para meninas, e os meninos que dançam são nomeados ‘gays’", disse Gustavo
Gustavo lembra que o início da carreira foi complicado e chegou a sofrer preconceito dentro da própria casa. “Já sofri muito preconceito na minha escola de ensino, e até mesmo dentro de casa. Não foi nada legal, principalmente tendo que passar por tudo sozinho. Mas meu comportamento e atitude fizeram com que eu logo fosse respeitado e admirado. É uma pena que o ballet ainda seja associado a uma coisa para meninas, e os meninos que dançam são nomeados ‘gays’. Aqui fora, a arte é muito apoiada e respeitada. As escolas e companhias estão cheias de homens conhecidos, reconhecidos e muito respeitados. Independente da opção sexual de cada um, homem dança como homem”.
E após vencer todo esse desafio, e mesmo seguindo com uma rotina extremamente cansativa, o bailarino afirma que não viveria sem nada disso. “A dança é o que eu tenho e sou. Ela significa tudo para mim. A dança me trouxe oportunidades que talvez eu nunca viveria, ou teria se não fosse um bailarino. Com ela eu sinto que estou vivo”, relatou Gustavo.
Diversidade
Sempre pautado na diversidade, o professor de dança e bailarino Rodrigo Rithelly, de 25 anos, iniciou a sua carreira aos 18 anos. “Tudo começou quando três profissionais de uma escola do Rio de Janeiro vieram dar aula de dança de salão no Espírito Santo. Eles colocaram um sistema de bolsas integrais e eu fui contemplado com uma vaga. Me apaixonei pela dança e resolvi que queria mais. Foi aí que procurei uma escola para iniciar em outras modalidades”.
Hoje, trabalhando como professor, fazendo aulas de ballet clássico e com uma rotina corrida, Rodrigo também faz parte da companhia de dança contemporânea Mitzi Marzutti. “A dança me move. Dançar é arte, e a arte acolhe. Ela me acolheu e não me largou mais. Sinto um misto de emoções. Cada proposta de aula ou trabalho coreográfico me trás um sentimento diferente. Prazer. Liberdade. Alegria. Amor. Não penso em parar, mesmo sabendo que vai chegar uma hora em que o corpo não vai corresponder mais. Meu objeto de trabalho é o meu corpo e será neste momento a hora de me reinventar como artista”, destacou.
“A dança me move. Dançar é arte, e a arte acolhe. Ela me acolheu e não me largou mais".
E mesmo com toda essa paixão e determinação, o bailarino também encontrou pedras no caminho, mas soube passar por elas. “Tem sempre alguém que faz um tipo de brincadeira de mau gosto, principalmente na adolescência, mas nunca tive problema com isso. Sempre fui respeitado. Meus pais, no início, foram resistentes, mas depois apoiaram e hoje amam o que eu faço. A arte em si no Brasil já não é tão valorizada. As companhias locais não são apoiadas e isso faz com que tenha menos opções. Por isso muitas vezes a melhor opção, como bailarino, é sair do Brasil. Não acho que é difícil viver da dança. Como professor não é. Se você estuda, trabalha com dedicação e respeito, você consegue viver sim da dança”.
Sentimentos
Aos sete anos, George Falcão começou os seus primeiros passos na dança. Hoje, com 24, pratica apenas o ballet clássico. Ele também já passou pelo jazz e pela dança contemporânea. “Tudo começou quando fui assistir uma apresentação de ballet no Theatro Carlos Gomes. Fiquei encantado e disse ao meu pai que queria dançar. Minha mãe me colocou em uma escola e estou até hoje. A dança se tornou para mim, além de ser o que mais amo, a minha profissão, meu sustento, minha base. É onde eu me encontro e me sinto muito bem. Costumo dizer que bailarino expressa seus sentimentos com os passos”, contou.
"Infelizmente o povo diz que Brasil é a terra do oba oba, festa e carnaval, e que as pessoas não ligam para nada".
George sempre teve o apoio dos pais para seguir a carreira de bailarino, mas mesmo com todo esse incentivo, segundo ele, existem pessoas que desaprovam. “Todos irão passar por momentos chatos. Infelizmente o povo diz que Brasil é a terra do oba oba, festa e carnaval, e que as pessoas não ligam para nada. Mas isso é a mais pura mentira. As pessoas colocam rótulo nas coisas e acham que temos que seguir. O preconceito com homem na dança e com a profissão de bailarino sempre vai existir. Hoje não passo mais por isso, mas já passei. Ballet não é brincadeira”.
Vida
Apaixonado por vários estilos, o estudante e educação física Lucas Yuri, de 20 anos, sempre esteve próximo da dança. Em busca do aprendizado, desde os 16 anos, ele tentava aprender sozinho assistindo vídeos de artistas e dançarinos. “Comecei fazendo danças cover, aprendendo coreografias que via no Youtube. Na época, um participava de grupos de dança. Nos juntávamos, aprendíamos as coreografias e apresentávamos em eventos, principalmente de cultura oriental. Comecei a me sobressair e percebi que queria levar aquilo para a vida toda. Mas só tive oportunidade de fazer aulas aos 18 anos”.
Lucas começou atuando em danças urbanas, depois passou a experimentar o ballet clássico, a dança contemporânea e o jazz. “Dança é o meu trabalho agora, e também é o que me faz mais feliz. Dançar é uma forma de comunicação essencial pra mim. Eu direcionei toda a minha vida para isso, e pretendo viver com ela, seja como bailarino, professor ou coreógrafo. Quero poder inspirar as pessoas, da mesma forma como olho para os meus ídolos e me sinto inspirado. Me sinto completo”, contou.
"Dançar é uma forma de comunicação essencial pra mim. Eu direcionei toda a minha vida para isso".
Com uma rotina intensa, que ocupa todo o dia, e ainda tendo que lidar com o preconceito das pessoas, o estudante disse que não pensa e abrir mão de dançar. “Acho que por ter entrado tarde, eu já estava com uma cabeça formada, já sabia o que queria. Mas a dança, principalmente o ballet clássico, ainda é associada fortemente ao universo feminino. O menino que dança é visto como gay ou afeminado, e essas características são entendidas pela sociedade como algo ruim. Aceito meu gosto pela dança, minha sexualidade, e trato esses assuntos com naturalidade, porque é assim que deve ser tratado”, apontou.
Habitat
Também estudante de educação física, Ruan Sodré, 20 anos, teve o seu primeiro contato com a dança ainda criança. Ele começou dançando em um grupo de uma igreja, mas depois parou. “Voltei com 13 anos, mas para dançar Hip Hop. Com 15 anos fui convidado para dar apoio em uma coreografia de ballet clássico, e daí em diante fui para outros estilos. Já experimentei um pouco de tudo”, disse.
Todo esforço para aprender poderia ter sido em vão. Com alguns problemas no pé, Ruan chegou a receber um diagnóstico de que poderia parar de dançar. “Eu tenho alguns problemas no pé, e uma vez um médico falou que eu não poderia fazer metade das coisas que eu faço. Sinto dor com qualquer outra atividade, mas quando estou dançando isso não me afeta em nada. Nunca penso em parar de dançar. Acho que vou ser um velhinho que vai querer dançar tudo. Pretendo passar isso para os meus filhos também. Quando estou dançando me sinto em casa. Foi um presente de Deus. É como se a dança fosse o meu habitat”.
“Se a gente for mover a nossa vida pelo que as pessoas pensam, nós não vamos fazer nada" .
Depois da luta contra as dores, a outra luta foi contra os olhares preconceituosos. “No Brasil há muito preconceito e eu vejo que isso é mais forte aqui. Lá fora nós vemos muito a presença dos homens. Eu já passei por várias situações chatas. As pessoas me perguntavam se eu dançava, e quando eu falava que sim eles perguntavam se era hip hop. Mas quando eu falava que também dançava ballet, jazz e outras danças eles faziam cara feia. É meio constrangedor. Mas meus pais sempre me incentivaram muito. Foi muito interessante a participação deles”, contou.
Cenário capixaba
Para a diretora da escola de dança que leva o seu nome, Mônica Tenore, ainda temos uma sociedade muito machista, principalmente em relação a dança. Isso, segundo ela, faz com que o número de homens nas companhias seja muito reduzido.
“Acho que o preconceito vem diminuindo bem lentamente, mas sempre existiu e acho que sempre vai existir. O número de rapazes varia bastante. Quando eles percebem que em alguma escola tem mais meninos dançando, eles procuram essa escola. Eu sempre tive meninos aqui, e muitos deles bastante talentosos. Alguns já nascem com esse dom, como foi o caso de João Pedro Menegussi. A idade também varia muito, tenho meninos que começaram com cinco anos, outros com 10 anos e alguns na adolescência”.
Mônica contou que o apoio dos pais é imprescindível para esses jovens que precisam encarar a desaprovação de muitas pessoas. “Com certeza esse apoio ajuda muito. Os rapazes têm grande importância na dança clássica, pois as grandes obras dos ballets de repertório são histórias de príncipes, reis, escravos, etc. Não temos como preparar uma obra do Lago dos Cisnes, Don Quixote, Corsário, entres outros grandes ballets, sem a participação deles”, disse.
"Quem tem o sonho de dançar, deve correr atrás desse sonho, pois depois o tempo passa e não tem volta".
Em todo o território nacional, de acordo com a diretora, as dificuldades são as mesmas, mas a diferença é que nos grandes centros, como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, existem grandes companhias que dão mais oportunidade para eles. “O nosso incentivo é dar bolsa de estudo, fazendo aulas todos os dias com seriedade e participando dos espetáculos e concursos de dança. Quem tem o sonho de dançar, deve correr atrás desse sonho, pois depois o tempo passa e não tem volta. Determinação, muita garra, raça, e o maior de tudo é o amor e a paixão que se tem pela dança”, finalizou.
(Foto de abertura da matéria: Everton Nunes)