O Brasil é o segundo país do mundo em ataques a escolas, atrás apenas dos Estados Unidos. De 2002, quando o primeiro caso ocorreu, na Bahia, até hoje foram 22 ataques cometidos por alunos e ex-alunos, sendo nove eles concentrados entre os meses de agosto de 2022 e março de 2023.
Ao todo, foram atacadas 23 escolas – 12 estaduais, sete municipais (incluindo uma cívico-militar) e quatro particulares –, fazendo um total de 35 vítimas fatais – 23 estudantes; cinco professores; dois profissionais da educação, e cinco atiradores, que atentaram contra as próprias vidas.
Os dados são de um estudo realizado pela professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Telma Vinha, coordenadora do grupo de estudos “Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública”, na mesma instituição.
Telma Vinha é a maior autoridade no assunto no Brasil e esteve em Vitória para apresentar os dados do estudo para os gestores das 103 unidades de ensino da rede municipal de Vitória durante o seminário “Convivência Escola e Cultura de Paz”, na última segunda-feira, dia 24, no auditório da Prefeitura Municipal de Vitória.
De acordo com a especialista, os ataques são um tipo de violência à escola, ou seja, contra a escola. É uma violência que choca, principalmente porque quando se ataca uma escola, é como se todas as escolas fossem atacadas e, por isso, não é possível aceitar ou normalizar esse tipo de agressão.
“Na nossa pesquisa não há nada que justifique por que o ataque foi à escola A e não contra a escola B. Não é ‘culpa’ da escola, porque pode ocorrer com qualquer escola. O que identificamos é o perfil dos alunos e ex-alunos agressores: são jovens, de 10 a 25 anos, homens, brancos, com gosto pela violência e culto às armas e que buscam ser reconhecidos. Eles têm valores opressores, com misoginia, homofobia, xenofobia e supremacia, e apresentam uma falta de perspectiva, de propósito de vida. São pessoas que não têm o que perder e não têm receio de morrer; querem defender uma causa e sair do anonimato”, explica Telma.
Segundo o estudo liderado pela especialista, há outro ponto em comum entre os agressores: para todos eles, a escola era ou foi lugar de sofrimento. Eles foram, por exemplo, excluídos, vítimas de bullying, humilhados pelos colegas e suspensos das aulas.
“São pessoas que passaram a fazer parte de uma subcultura extremista, articulando-se em comunidades mórbidas, porque encontraram em fóruns on-line que incentivam a violência escuta e acolhimento, e é isso que precisamos cultivar nas escolas. Até porque a desradicalização dos jovens nunca é pela competição, mas pela conexão, pelos afetos. É preciso ouvir, para que eles se sintam pertencentes a uma comunidade real, com pessoas físicas”, destaca Telma.
As contribuições da escola para mudar essa cultura da violência são muitas, de acordo com Telma. Para ela, o ambiente escolar precisa ser de escuta, confiança, acolhimento e de desenvolvimento de valores mais éticos e de competências sociais, morais e emocionais.
“Temos que criar na escola um ambiente promotor de saúde mental. As escolas têm que ser abertas para a comunidade, não transformadas em presídios. É preciso fortalecer a rede psicossocial dentro das escolas e ter em seus territórios projetos de arte, esportes, cultura, para gerar pertencimento.”
A cultura de paz não pode ser promovida apenas na escola, entretanto. Ambientes de ódio e de desrespeito ajudam que mais ataques aconteçam. Discursos sociais que incentivam a violência e o ódio encorajam direta e indiretamente os ataques.
“Também é necessário ter maior controle sobre as armas de fogo. Dos 22 ataques no Brasil, 12 foram com armas de fogo e em seis deles os atiradores conseguiram as armas em suas próprias casas. Discutir a convivência na escola implica em debater que tipo de sociedade a gente quer para o futuro”, sinaliza Telma.
A especialista Viviane Melo, autora do livro “Agressão: fundamentos biopsicossociais”, também presente no seminário “Convivência Escola e Cultura de Paz”, concorda que a escola tem sido um espaço de muita fala, mas de pouca escuta.
“É preciso ouvir esses meninos, pois a agressividade é uma linguagem. Entendê-los pode ser um caminho para reduzir os conflitos. Escolas precisam de profissionais de saúde mental, pois nos momentos de crises econômica, social e psíquica, estamos mais propícios aos comportamentos inconscientes. Os períodos de maior fragilidade para a escola, para a vida, na verdade, são os momentos de crise.”
Viviane acredita na construção de uma cultura de paz, mas lembra que paz é mais do que ausência de guerra. “Paz é viver junto com as nossas diferenças – de sexo, raça, língua, religião ou cultura – enquanto promovemos o respeito universal pela justiça e pelos direitos humanos.
As relações humanas não podem ser violentas, mas nelas cabem discussões, debates, conflitos de ideias, assim como é numa democracia. Não podemos nos esquecer disso, ou deturpamos o próprio conceito de escola.”
Cultura da paz como política pública
A mobilização pela paz nas escolas da rede municipal de ensino faz parte das iniciativas de uma política pública do município de Vitória pela cultura da paz. A Capital é pioneira nesse tipo de debate, iniciado desde o início da gestão, em 2021.
“Mesmo quando ninguém falava disso, nós nos debruçávamos sobre o assunto, ele já era uma pauta da prefeitura. E é isso que nos permite dar a resposta adequada nas crises. Mesmo nos momentos mais agudos, mais severos, nós tínhamos solução para a comunidade escolar e para os pais e servidores. Vitória saiu na frente na promoção da cultura de paz nas escolas, promovendo o entendimento e o diálogo dentro das nossas unidades, minimizando os conflitos sociais e aqueles que ocorrem dentro da relação educacional”, conta o prefeito da cidade, Lorenzo Pazolini.
Trata-se de, segundo Pazolini, humanizar as relações e promover o acolhimento para estudantes que por vezes eram invisibilizados. “Os profissionais de educação de Vitória têm sido muito proativos e têm tido muito sucesso na humanização do ambiente escolar, isso tem feito a diferença na nossa rede e feito com que vidas sejam preservadas e salvas. Nossa ambiência de paz torna Vitória uma referência para outras secretarias e gestões de outros entes da federação.”
O foco na construção de uma política pública de valorização da cultura da paz vem das experiências de Pazolini, enquanto esteve à frente da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, e da secretária de Educação de Vitória, Juliana Rohsner, que, antes de estar à frente da pasta foi a diretora responsável por transformar, com escuta, conversa e muita ação, uma das escolas mais violentas do Espírito Santo em um modelo de participação e bons resultados.
“A união dessas experiências deu certo e fez com que Vitória se tornasse referência, porque teve a coragem de ousar num momento ainda de retomada da pandemia”, avalia Pazolini.
A formação dos gestores das escolas em temas relativos à cultura da paz soma-se a outras iniciativas já implementadas pela prefeitura, como as visitas tranquilizadoras da Guarda Municipal nas escolas e o botão do pânico, um dispositivo de segurança que pode ser acionado em casos de troca de tiros nas redondezas das unidades de ensino ou alguma outra situação de risco. Uma vez acionado, o dispositivo estabelece uma comunicação com a Guarda Municipal e envia para ela o áudio da unidade de ensino.
“Buscamos soluções factíveis, concretas, que de fato possam ser implementadas nas nossas escolas, sempre com muita tranquilidade, sem causar pânico, valorizando as evidências científicas e as boas experiências de fora do Brasil”, observa Pazolini.
A secretária de Educação de Vitória, Juliana Rohsner, ressalta que a necessidade de fortalecer com os diretores a questão do clima escolar surgiu a partir da leitura do cenário exposto no início da gestão.
Ainda era o auge da pandemia, com aumento significativo de exposição de crianças e adolescentes a telas e as pessoas muito irritadas. O momento era de cuidar do clima nas escolas, com acolhimento, e muitas formações foram realizadas com essa perspectiva.
“A escola sempre foi um espaço de convivência social. As coisas que acontecem em sociedade reverberam na escola. Na escola, os valores têm que ser repensados, e, nessa reconstrução, vemos que o fenômeno da violência nas escolas é multifatorial. Por isso, Vitória lida com a questão de infraestrutura sim, mas é necessário cuidar também das pessoas que estão dentro da escola. A cultura de paz se faz pelo convívio mesmo, e sempre com uma rede de proteção, porque a educação não vai dar conta sozinha”, enfatiza Juliana.
Escola como ambiente de escuta e acolhimento
Dentro da perspectiva de criação de uma cultura de paz dentro das escolas, a EMEF Suzete Cuendet tem promovido a proteção da escola e de todos os alunos controlando o foco do olhar. Ao invés de parar o olhar na violência, o tempo inteiro, a escola tem voltado a atenção para a própria instituição e a produção de conhecimento, de valores, de respeito e parcerias.
“Estamos aproveitando situações cotidianas de bullying e de violência para abrirmos conversas com nossos alunos. A gente só se protege evitando essas situações, por isso, criamos projetos institucionais que falam da dor da existência, dos problemas na família, principalmente aqueles criados na pandemia. Se a gente não abrir esse canal de escuta, a gente só aumentar a dor e a violência. Na nossa escola, tudo mudou, porque agora os alunos têm coragem de dizer o que elas sentem, o que estão vivendo e como estão vivendo. Criamos uma consciência coletiva, uma capacidade de olhar para a dor do outro. Mas tudo é devagar, é um processo contínuo, mas ainda bem que ele começou”, conta a diretora da escola, Rúbia Xibili.
O bullying ainda é o grande vilão dentro das escolas, de acordo com o diretor da EMEF TI Izaura Marques da Silva, localizada em Andorinhas, Ivan Nyls Ribeiro Lana. Por isso, para ele, as formações voltadas para a cultura de paz são tão importantes.
“Não é fácil para ninguém saber que estamos na iminência de diversos ataques. É muito importante falar de determinadas violências, que muitas vezes estão ocultas, a gente nem sabe. Os alunos passam nove horas dentro da escola, e essas situações tendem a acontecer. Estamos sempre fazendo uma rotina com os estudantes para tentar minimizar o máximo possível essas violências. E com essas formações, o que a gente aprende reflete até mesmo na dinâmica do próprio aprendizado. A gente vê que com o passar dos dias os alunos conseguem se concentrar melhor, articular a fala. É um trabalho de formiguinha, mas a gente consegue ver o resultado na aprendizagem.”