Meio Ambiente

Conquista do ambientalismo capixaba: Reserva Kaetés e a conservação da saíra-apunhalada

A reserva Kaetés marcou a luta pela conservação da saíra-apunhalada. Hoje, a reserva é símbolo de conservação e esperança em Vargem Alta

Há mais de uma década, eu ouvia falar da saíra-apunhalada como um ser mitológico, que pouquíssimos haviam tido o privilégio de encontrar e também, da necessidade da criação de uma área protegida para ela. Isso me parecia tão distante na época.  

Saíra-apunhalada com lagarta no bico, em comportamento de predação observado em Vargem Alta
Saíra-apunhalada predando uma lagarta. Fotografia publicada no livro do Corredor Ecológico entre o Parque Estadual da Pedra Azul e o Parque Estadual de Forno Grande. | Foto: Leonardo Merçon / Instituto Últimos Refúgios.

Sem esperança da criação de uma nova reserva para a sua proteção e com as ameaças constantes às áreas naturais da região, aos poucos crescia minha vontade de fotografar a saíra-apunhalada antes dela ser extinta.

Essa ave pequena, de olhar atento e garganta marcada por uma mancha vermelha como um corte, é uma das espécies mais ameaçadas do planeta. 

Parecia que ela sabia!

Tive a chance de me aproximar dela quando a equipe do Programa de Conservação da Saíra-apunhalada me convidou para acompanhá-los em uma atividade de campo. 

Estavam monitorando um ninho e, naquele dia, fui agraciado com um momento que jamais esquecerei.

Enquanto ajustava minha câmera, atento ao movimento das árvores ao redor, um grupo de saíras se aproximou. 

Uma delas pousou num galho a poucos metros de mim. Ela não estava ali por acaso: veio em busca de alimento e, diante dos meus olhos, predou uma pequena lagarta. 

Minha câmera estava pronta. O clique veio com o coração acelerado. Aquela imagem, mais tarde publicada no meu livro sobre o Corredor Ecológico entre Pedra Azul e Forno Grande, tornou-se um marco na minha jornada como fotógrafo de natureza.

A saíra-apunhalada pousou na minha frente, inusitadamente, com um comportamento atípico que até então, os pesquisadores não tinham visto no monitoramento daquele ninho.

Nada tira da minha cabeça, que ela fez isso sabendo que eu utilizaria sua imagem para o bem… ela sabia! 

A notícia depois do clique

Alguns anos após esse registro, fui surpreendido por uma notícia que me encheu de alegria. O Instituto Marcos Daniel, realizador do Programa de Conservação da Saíra-apunhalada, havia adquirido uma grande área de floresta no coração da região onde a saíra-apunhalada vive. 

Vista aérea de floresta nativa preservada onde vive a saíra-apunhalada, no Espírito Santo
Grande área de floresta preservada, a mata de Caetés, da qual a Reserva Kaetés faz faz parte. | Foto: Leonardo Merçon / Instituto Últimos Refúgios.

Ali nascia a Reserva Kaetés, uma Reserva Particular do Patrimônio Natural criada justamente para proteger essa espécie tão singular e rara.

Para mim, essa iniciativa representa uma das maiores conquistas recentes, de uma Organização da Sociedade Civil (OSC) no Espírito Santo. 

Não só pela dificuldade de captar recursos para comprar e manter uma área, mas pela coragem de proteger um território onde alguns, erroneamente, acreditam que o desenvolvimento a qualquer custo, ainda é um caminho. Mesmo em um cenário catastrófico de crise climática em que estamos vivendo. 

Orgulho de um passarinho?

A Reserva Kaetés inicialmente despertou muitas dúvidas na comunidade local. Algumas pessoas acreditavam, erroneamente, que sua presença pode dificultar atividades econômicas na região. E aos poucos, cidadãos mais atentos ao cenário global, estão percebendo, no entanto, que é o oposto. 

A presença de uma reserva pode ser um impulso para o desenvolvimento sustentável. 

Uma floresta protegida valoriza a terra, protege as nascentes e abre caminhos para o turismo de natureza, educação ambiental e geração de renda com baixo impacto.

A floresta protegida para a conservação da saíra-apunhalada, além de proteger muitos outros animais,  também serve para regulação do clima e manutenção do ciclo da água local, incluindo as chuvas, sendo de grande importância para os produtores locais. | Foto: Leonardo Merçon / Instituto Últimos Refúgios

Se eu tivesse uma joia dessas no quintal de casa, me sentiria orgulhoso. 

E é isso que desejo transmitir com esse texto: o orgulho de ter a saíra-apunhalada e outras espécies raríssimas fazendo parte da história capixaba, em especial, de Vargem Alta.

Pequena, rara e poderosa

A saíra-apunhalada (Nemosia rourei) mede cerca de 13 centímetros e pesa por volta de 22 gramas. 

Vive em bandos e alimenta-se de pequenos artrópodes. 

O nome popular vem da mancha vermelha no peito, que, em contraste com o branco das penas, lembra uma ferida feita por um punhal. 

Detalhe da saíra-apunhalada com a mancha vermelha visível no peito
Na foto, é possível observar a mancha vermelha que dá nome à saíra-apunhalada. | Foto: Leonardo Merçon / Instituto Últimos Refúgios.

Sua distribuição geográfica é restrita às montanhas do Espírito Santo. Já foi considerada extinta por mais de um século até ser redescoberta nos anos 1990. 

Um verdadeiro “Efeito Lázaro”, que é como os cientistas chamam a “ressurreição” de uma espécie da extinção. Confesso que é um sonho meu redescobrir uma espécie!

Hoje, restam menos de 20 indivíduos conhecidos. A espécie é classificada como “criticamente ameaçada” (CR) pela IUCN. 

Sua presença está relacionada a florestas bem conservadas, entre 850 e 1.250 metros de altitude. 

A principal ameaça é a perda de habitat, causada por desmatamento, extração de palmito, mineração e expansão de lavouras.

Dar valor à vida que nos sustenta

A criação da Reserva Kaetés protege uma floresta de Mata Atlântica rica em biodiversidade, fonte de água para comunidades como Alto Castelinho e Vila Maria, e habitat de muitas outras espécies ameaçadas. 

Também oferece oportunidades para o ecoturismo e para pesquisas científicas, sendo lar de um centro de visitantes e uma torre de observação integrada às trilhas da reserva.

A torre de observação, inclusive, é uma das mais espetaculares de toda a Mata Atlântica. Que presente para quem trabalha na cadeia do turismo e para qualquer observador de aves!

Torre de observação da Reserva Kaetés, um grande atrativo para o turismo, com capacidade de movimentar a economia local.  | Foto: Ari Nascimento e André Alves

Fiquei muito feliz em saber que a construção da sede da reserva não exigiu desmatamento. Suas instalações foram erguidas em áreas antes ocupadas por eucaliptos. 

As trilhas, a torre e o centro de pesquisa foram planejados com o mínimo impacto ambiental, utilizando soluções sustentáveis como reaproveitamento de madeira e poço artesiano. Um grande exemplo de respeito com o meio ambiente. 

 Grupo de pessoas caminhando pelas trilhas da Reserva Kaetés em visita educativa
A reserva recebe muitas pessoas que amam a natureza. Observadores de aves, ambientalistas, pesquisadores, parceiros do Instituto e comunidade local fazem parte dos que se apaixonaram pela reserva.  | Foto: Acervo PCSA / IMD

Respeito também à comunidade local

A riqueza da Reserva Kaetés não está apenas em sua fauna ou flora, mas no modelo de gestão que respeita e busca parceria com a comunidade local. 

O Instituto Marcos Daniel abriu as portas da reserva para escolas, moradores e pequenos grupos de visitantes. 

Por não haver financiamento público, a manutenção da área é feita com recursos de doações e do turismo de observação de aves. O que me faz querer levar todos os meus amigos lá para conhecer o local.

Aos sábados e feriados, grupos podem visitar a reserva mediante agendamento. Moradores da região e escolas públicas têm entrada gratuita (mostrando mais uma vez a preocupação da Reserva com a comunidade local). 

Cada visita é acompanhada por um condutor que orienta os visitantes, garantindo o mínimo impacto para a natureza e promovendo educação ambiental de qualidade.

Quando a conservação muda o olhar 

Com o tempo, a saíra-apunhalada passou de ser apenas um pássaro raro, para se tornar um símbolo da conservação no Espírito Santo, mas em especial, para a comunidade local. 

Seu nome aparece pintado em muros, em camisetas, bandeiras e até logotipos de comércios locais. 

Atividades de envolvimento com a comunidade local promovidas pelo Programa de Conservação da Saíra-apunhalada, realizado pelo Instituto Marcos Daniel. | Foto: Acervo PCSA / IMD.
Equipe plantando mudas de árvores nativas em área antes degradada
Também é realizado o reflorestamento de áreas degradadas na reserva | Foto: André Alves.

Há orgulho, há pertencimento. Em cinco anos, a conservação da saíra ajudou a reconstruir a autoestima de uma comunidade antes conhecida por problemas sociais.

Ainda há desafios, claro. Mas os olhos brilham quando se fala da pequena ave de peito vermelho. Ela virou esperança. E espero, com essa matéria, reforçar essa mensagem.

Uma floresta inteira protegida para sempre

Aquela foto da saíra com a lagarta no bico foi um sinal. Um lembrete do porquê faço esse trabalho. 

A imagem que abre esta matéria revela o quanto ainda temos a ganhar quando protegemos nossas florestas, nossas águas e nossa fauna. Cada ação conta.

A Reserva Kaetés é um pedaço de floresta protegido por lei, e também uma conquista que começou com um sonho. Um presente para o Espírito Santo. Um símbolo de que, mesmo em tempos difíceis, ainda há espaço para boas histórias.

Visite a reserva Kaetés e faça você também parte dessa história. 

Se você faz parte da comunidade local, você JÁ FAZ PARTE dela! Vista a camisa da Saíra-apunhalada e tenha certeza de que ela ainda vai trazer muitas coisas boas para você e sua família. Eu, que moro distante, confesso que tenho um pinguinho de inveja de quem é vizinho dessa preciosidade.

Espero que esse tesouro natural capixaba seja cada vez mais valorizado. 

Comente, curta e compartilhe este conteúdo. Envie o link da matéria para seus amigos que vão curtir esta história. Sua interação é fundamental para manter viva a minha chama da conservação e mostrar ao mundo a importância de proteger nossa biodiversidade.

Espero que tenham gostado de mais essa história. Te vejo na próxima aventura!

Leonardo Merçon

Fotógrafo de Natureza, Cinegrafista e Produtor Cultural

Fundador e diretor voluntário do Instituto Últimos Refúgios, OSC ambiental/cultural sem fins lucrativos, que atua desde 2011 na divulgação e sensibilização ambiental, estimulando o diálogo entre sociedade, organizações ambientais, instituições privadas e governamentais. Fotógrafo de natureza, documentarista desde 2004, Merçon é focado na proteção da natureza, com Mestrado em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento sustentável pela ESCAS/Instituto IPÊ. Também formado em Design Gráfico pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Estudou fotografia voltada para publicações na Academia de Mídias e Artes, na Alemanha. O colunista acredita e trabalha em atividades de sensibilização ambiental (em especial com crianças) e fomento do turismo relacionado à natureza. Leonardo Merçon também tem dezenas de livros impressos e documentários em vídeo publicados. Realiza trabalhos ajudando a contar histórias por meio de imagens em mídias nacionais e internacionais, como a BBC de Londres e National Geographic Brasil, dentre outras.

Fundador e diretor voluntário do Instituto Últimos Refúgios, OSC ambiental/cultural sem fins lucrativos, que atua desde 2011 na divulgação e sensibilização ambiental, estimulando o diálogo entre sociedade, organizações ambientais, instituições privadas e governamentais. Fotógrafo de natureza, documentarista desde 2004, Merçon é focado na proteção da natureza, com Mestrado em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento sustentável pela ESCAS/Instituto IPÊ. Também formado em Design Gráfico pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Estudou fotografia voltada para publicações na Academia de Mídias e Artes, na Alemanha. O colunista acredita e trabalha em atividades de sensibilização ambiental (em especial com crianças) e fomento do turismo relacionado à natureza. Leonardo Merçon também tem dezenas de livros impressos e documentários em vídeo publicados. Realiza trabalhos ajudando a contar histórias por meio de imagens em mídias nacionais e internacionais, como a BBC de Londres e National Geographic Brasil, dentre outras.