Polícia

Grindr: golpistas usam app de encontro gay para crimes de extorsão e violência no ES

Moradores em Vitória e Vila Velha foram obrigados a transferir dinheiro ao serem ameaçados dentro da própria casa; Polícia Civil investiga os casos

Marcelo Pereira

Redação Folha Vitória
Foto: Reprodução | Getty Images

Usuários capixabas do Grindr, o aplicativo de namoro gay mais popular do mundo, têm alertado nas redes sociais que há uma dupla de golpistas que usam a plataforma como isca, exibindo seus corpos e simulando que estão interessados em um encontro casual. 

Os casos terminaram em prejuízo financeiro, agressão e a sensação incômoda de que a própria casa não é mais um lugar seguro.

O golpe do Grindr funciona da seguinte forma: os suspeitos criam perfis no aplicativo para marcar encontros. Assim que conseguem o contato e o consentimento, eles acessam as residências e passam a extorquir quem o chamou, exigindo dinheiro. 

Ameaçam vandalizar os móveis das vítimas ou machucá-las ou causar constrangimento. Exigem pagamento via transferência bancária online ou por Pix por se identificarem como supostos garotos de programas. Detalhe: o Grindr não autoriza nenhum tipo de oferecimento de serviço de acompanhante.

As vítimas desses falsos usuários do aplicativo forneceram prints dos perfis da dupla para a reportagem do Folha Vitória, além das conversas e comprovantes do dinheiro que perderam ao aceitarem as extorsões. A Polícia Civil está investigando os casos e afirmou que detalhes não serão divulgados por enquanto.

Um servidor público federal de 31 anos, que pediu para não ter seu nome identificado, passou por esse sufoco com os golpistas. Morador da zona Norte de Vitória, ele, que já usou o aplicativo outras vezes, marcou encontro com o golpista via Grindr na manhã de 16 de fevereiro.

"Ele, que se identifica na plataforma como Keven, quando entrou na minha casa, após a gente ficar, disse que só me beijaria se eu pagasse R$ 100. Eu achei aquilo estranho já que não se tratava de um encontro, um date casual, nada envolvendo pagamento. Foi aí que ele falou que era garoto de programa. Eu disse que não iria pagar nada já que não havia nada disso no perfil dele e o aplicativo não é feito para isso. Ele então começou a me ameaçar, dizendo que iria chamar a polícia por eu não querer pagar", relembra, achando que, nesse contato telefônico, provavelmente, foi o momento em que ele chama o comparsa, que se passou por atendente do Ciodes.

Segundo o servidor, o rapaz deve ter mudado o perfil no aplicativo minutos antes de chegar para o encontro, acrescentando as letras GP ("garoto de programa") na descrição. 

"Aí, continuou com o teatro. Ele dizia que não iria sair sem receber pelo serviço. Foi então que eu resolvi ligar para a polícia. A reação dele mudou completamente e partiu para cima de mim e tirou o meu telefone", recorda.

Os dois passaram a discutir e o suspeito correu para o quarto da vítima, pegou seu notebook e o danificou, jogando no chão. Ele resolveu deixar o apartamento com o celular do rapaz. O comparsa já o esperava no portão.

"Eu fiquei desesperado, peguei o note e passei a segui-lo. Ele tava carregando o meu telefone. Eu discuti com ele, ele me bateu, me empurrou pelo pescoço. Fui seguindo os dois pela rua e disse que iria pagar o que eles queriam, que daria R$ 500 mas precisava do celular para fazer a transferência. Dei a entender que iria entrar no golpe. Foi então que eles me deram o telefone, eu transferi o dinheiro para um amigo e disse que eu teria que esperar que ele me devolvesse a quantia para fazer o pagamento aos dois criminosos. Eles começaram a me bater, a me chutar, terminaram de quebrar o note e fugiram", relata.

O saldo foi um notebook quebrado, mais hematomas no ombro direito e escoriações no pescoço.

A Polícia Militar foi acionada pelo rapaz e chegou a atender a ocorrência. Mas não teve muito resultado. "Eles chegaram 25 minutos depois sendo que tem uma guarnição da PM a cinco minuto de bicicleta de minha casa. Falaram que não tinha como configurar flagrante pois os suspeitos não estavam mais lá. Recomendaram que eu fizesse um boletim de ocorrência na delegacia", recorda.

Na delegacia, ele diz que houve descaso por parte dos agentes, no momento do registro do boletim. 

"Eram duas mulheres. Uma começou a ouvir meu relato, mas teve que sair. A outra que a substituiu me perguntou se eu tinha certeza se queria continuar com aquele boletim porque não daria nada. E outra: me disse que o que tinha acontecido comigo que me servisse de lição, me dando lição de moral por utilizar um aplicativo. Um tipo de moralismo barato, totalmente inadequado. Sou uma vítima, antes de mais nada", reclama. Ele insistiu e o boletim foi feito.

Ele, com a ajuda dos outros usuários prejudicados, começou a fazer uma pesquisa nas redes sociais. "Descobri outras redes dele. Reuni tudo e forneci à polícia para ajudar nas investigações", revelou.

Golpes em Vila Velha: um reagiu e o outro repassou R$ 300 para evitar escândalo

Dois dias depois do ocorrido em Vitória, um outro homem, desta vez em Vila Velha, também foi vítima do mesmo golpista usando o Grindr. Ele confirmou que se tratava do rapaz que havia extorquido o servidor na Capital. Pediu anonimato por ter esposa e filhos. Encontrou o golpista na plataforma de namoro e marcou o encontro num motel em Itaparica. 

O rapaz fez o mesmo esquema: após alguns minutos de namoro com a vítima, disse que era garoto de programa. O homem também se surpreendeu mas, temendo o escândalo, cedeu às extorsões, fazendo uma transferência de R$ 300 via Pix.

Naquela mesma tarde, um assistente administrativo de um escritório de Engenharia, de 28 anos, recebeu o golpista em sua casa. 

"Eu queria um encontro para espairecer de um dia estressante no trabalho, ainda mais sendo uma sexta-feira. Eu o convidei pelo Grindr por estar próximo da minha residência. Ele apareceu e a gente começou a namorar. Aí, ele começou esse golpe dizendo que era garoto de programa e me ameaçou. A gente fica sem chão, se sente desprotegido, totalmente vulnerável", relembra.

O assistente fez uma transferência de R$ 200, mas o golpista reclamou, dizendo que não havia recebido. "Eu acho que era tudo teatro para ele querer mais. Eu estava chorando, desesperado, falando para ele que já tinha feito tudo o que ele queria e que ele saísse da minha casa. Foi aí que ele disse iria quebrar tudo no meu apartamento", descreve.

O rapaz reagiu. "Eu era mais forte que ele porque ele era franzino. Quando ele ameaçou arremessar uma garrafa de bebida na minha smart TV, eu fui pra cima dele e consegui dominá-lo. Agarrei ele pelo pescoço e o joguei no sofá. Ele não esperava aquela reação. Saiu correndo da minha casa. Eu vi que ele se encontrou com um outro sujeito na porta do prédio. Estava furioso. Falou que iria voltar e me matar", acrescenta. 

Refeito do susto, ele registrou boletim de ocorrência numa delegacia de Vila Velha.

Para reaver o dinheito, tentou entrar em contato com o dono do número para o qual fez a transferência. 

"É um número de Minas Gerais. A mulher que me atendeu, com certeza, deve ser outra comparsa porque disse que não tem acesso à conta bancária e que, por isso, não teria como devolver a quantia", contou. A história não o convenceu. Ele tentou contato novamente mas a responsável pelo número o bloqueou.

Relatos também de Minas Gerais

O assistente do escritório de Engenharia e o servidor público constataram que foram vítimas dos mesmos golpitas quando o servidor foi às redes e publicou seu relato. Desde então, outros usuários do aplicativo de namoro começaram a se manifestar e constataram se tratar dos mesmos suspeitos. 

Trocaram prints dos perfis dos golpistas disponíveis no Grindr. Todos tiveram seus contatos bloqueados no aplicativo pelos golpistas.

"Pelos relatos descobrimos que essa dupla tem agido desde maio do ano passado. E outra: também aplicaram esse golpe do Grindr em Minas Gerais. Com certeza, o número de telefone que usam com código 31 é de alguém de lá que recebe as transferências", aponta o servidor.

Um morador de Belo Horizonte confirmou para o servidor público que também havia sido vítima. Foi em setembro de 2021. Transferiu R$ 250 para o golpista mediante ameaça. Ele não fez boletim de ocorrência pelo trauma que passou. 

"Eu deletei tudo o que eu tinha dele (contato de telefone, comprovante do Pix). Tive crise de pânico por algumas semanas. Ficava em casa sozinho e eu ficava com receio de ele voltar", comentou.

Foto: Aly Song/Reuters

As vítimas esperam que as investigações da polícia ajudem a parar os golpistas. Eles receiam que os prejuízos materiais possam se tornar algo pior. 

"A gente não sabe até que ponto esses dois podem ir. Com certeza, por causa do anonimato e nada estar acontecendo podem ser que acabem machucando alguém!", ressalta o servidor.

"A gente agora fica com o trauma de ter estado nas mãos de gente que usa um aplicativo de namoro para extorquir pessoas. Fiquei uma semana com dificuldade para dormir, relembrando tudo. Sem contar ter que ouvir gente hipócrita que fala que a gente mereceu. Estamos no século XXI. Todo mundo pode querer fazer sexo casual ou encontrar alguém para uma relação descompromissada. A vítima é a culpada?", questiona o assistente.  

O que diz o Grindr

Em sua página na internet, a empresa Grindr informa que não é permitido qualquer forma de publicidade e utilização comercial da plataforma e que o app é para uso pessoal. Ressalta que empresas podem ser responsabilizadas caso promovam trabalho sexual. 

"Por este motivo, temos de ser especialmente cuidadosos e remover todos os conteúdos que possam violar esta lei: ofertas para comprar ou vender sexo, nomeadamente referências a serviços de acompanhantes, serviços de massagens, combinações comerciais entre homens mais velhos e homens mais novos (sugar daddy / sugar baby), pessoas que procuram "prendas" / generosidade, etc", diz a publicação no site.

A empresa não tem representante comercial no Brasil. Está registrada na Califórnia, nos Estados Unidos. A reportagem questionou qual o procedimento da empresa frente a casos de usuários que utilizam o aplicativo para cometer golpes e o que as vítimas devem fazer. Quando a resposta for enviada a matéria será atualizada.

O que dizem as polícias Civil e Militar

A Polícia Civil respondeu que ambos os casos estão sob investigação nas respectivas delegacias. 

Sobre o crime que ocorreu em Vitória, o 4º Distrito Policial já iniciou diligências para a apuração do fato, inclusive com depoimentos agendados. Até o momento, nenhum suspeito foi detido e detalhes da investigação não serão divulgados, por enquanto.

Sobre o atendimento prestado na delegacia de Vitória, a Polícia Civil esclarece que nenhuma unidade policial civil pode se negar a registrar boletim de ocorrência, devendo o policial civil prestar o primeiro atendimento das providências a serem adotadas e orientar o noticiante. 

Qualquer cidadão que se sinta prejudicado com o atendimento realizado, pode se encaminhar à Corregedoria e formalizar a denúncia, para que o caso seja analisado.

A Polícia Militar respondeu que na quarta-feira, 16 de fevereiro, a vítima entrou em contato com o Ciodes às 10h42 informando que estava sendo agredida por um garoto de programa dentro de sua residência em Vitória. 

Houve queda na ligação, sendo restabelecido contato em seguida e uma guarnição da PM foi encaminhada ao local às 10h49, chegando às 11h09. 

O acusado já havia se evadido e não foi localizado no momento do fato. A vítima foi orientada a registrar a ocorrência em uma delegacia para que o caso fosse investigado.

Já sobre o golpe ocorrido em Vila Velha, o boletim de ocorrência foi registrado no dia 24 de fevereiro e o caso seguirá sob investigação do 7º Distrito Policial.

Delegado aconselha comparar perfil do aplicativo com outras redes sociais

O delegado Brenno Andrade, titular da Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes Cibernéticos (DRCC), diz que é preciso muita cautela e não ter receio de stalkear a pessoa com quem se marca um encontro pela primeira vez por meio de aplicativo. 

Foto: Reprodução/TV Vitória
Delegado Brenno Andrade recomanda que se faça pesquisa em outras redes sociais antes de confirmar um encontro por aplicativo de namoro

"É importante fazer uma pesquisa comparativa entre o perfil do app e as outras redes sociais do indivíduo. Verificar as postagens, o tempo delas, se ele diz ser quem é. Se não há registro dessa pessoa em outras redes ou pouquíssimas postagens são um ponto a se desconfiar e ficar alerta", explica. Diz ainda que é interessante perceber se há amigos e contatos em comum. 

Ele acrescenta que, numa primeira abordagem, o ideal é não marcar encontro sozinho ou levar a pessoa para a própria residência. ´

"Prefira um local público para se encontrar, um café, um restaurante, uma praça de alimentação. Leve um amigo com você para que se saiba que você tem um apoio, não está sozinho, que outra pessoa está ciente do que você está fazendo e com quem está se encontrando", aconselha. 

O delegado reconhece que é difícil seguir essa recomendação quando se trata de impulso amoroso. 

"Além disso, tivemos um processo de digitalização na hora de procurar relacionamentos, que foi acelerado pela questão da pandemia e do isolamento social. As pessoas não têm mais aquela paciência em marcar um encontro para tirarem as primeiras conclusões e primeiras impressões. Tudo é muito rápido e automático. E é aí que criminosos se aproveitam", desenvolve, recomendando que a segurança deve estar sempre no foco.

Nas estatísticas da delegacia, não há uma categoria especializada para golpes cometidos por meio de aplicativos de encontros. Geralmente, os casos descritos pelas vítimas são contabilizados como crimes de extorsão, quando há ameaça ou violência com o objetivo de obter alguma vantagem financeira. O crime é tipificado no artigo 158 do Código Penal Brasileiro, com pena de reclusão de 4 a 10 anos e multa.

O delegado Brenno Andrade diz que a investigação esbarra na falta de colaboração das empresas de aplicativos, muitas delas estrangeiras e sem representação comercial no Brasil. 

"A Polícia Civil solicita informações mas essas empresas nem sempre têm boa vontade em auxiliar nosso trabalho. Alegam que não têm escritório no Brasil, mas elas deveriam se submeter às leis brasileiras, já que estão oferecendo seus serviços no país", explica.

Confira algumas dicas para evitar o golpe do aplicativo e saiba como agir 

DENUNCIE

É importante que seja feito um boletim de ocorrência do caso, independentemente do dano material do golpe. Se possível, faça a denúncia em uma delegacia de crimes cibernéticos da cidade, se houver. Em casos de vítimas que se sintam intimidadas ou pouco confortáveis para realizar a denúncia em uma delegacia, a queixa pode ser feita ao Ministério Público.

NOTIFIQUE O APLICATIVO

Após o golpe a vítima deve informar o aplicativo ou site em que conheceu o golpista. As empresas costumam ter políticas de segurança que podem ajudar a identificar o suspeito e a banir o criminoso do aplicativo e evitar que outras pessoas sejam vítimas do mesmo crime.

GUARDE AS CONVERSAS

Para identificar o golpista, que costuma usar fotos e nomes falsos, é importante que as mensagens trocadas sejam preservadas e mostradas à polícia. Muitas vezes por vergonha ou raiva do ocorrido, as vítimas deletam as conversas e acabam destruindo instrumentos para a investigação e rastreamento do golpista. Portanto, faça prints de tudo o que você e o golpista conversaram.

PESQUISE SOBRE A PESSOA

Antes de marcar um encontro, procure pesquisar o nome da pessoa na internet e verificar se ela tem perfil em outras redes sociais, por exemplo. Isso pode ajudar a comprovar o nome do outro e a verificar se a pessoa não está utilizando uma foto falsa. 

Além disso, a recomendação é que um primeiro encontro seja marcado em locais públicos e que endereços residenciais não sejam compartilhados logo no início. Informar um amigo de confiança sobre o encontro também é indicado nesses casos.