Especialistas em religião não acreditam em "ritual satânico" na morte de família em Vila Velha
Para doutores em Ciências da Religião, elementos deixados no apartamento onde casal foi assassinado na Praia da Costa têm contexto histórico. Especialistas pedem cautela e respeito para a família e amigos diante da tragédia
Cruzes de cabeça para baixo, o número 666 pintado nas paredes e portas, além de páginas da bíblia rasgadas pelo apartamento do casal encontrado morto em Vila Velha nesta quarta-feira (05), não podem ser elementos relacionados exclusivamente a rituais, muito menos considerados "satânicos".
Segundo a polícia, Guilherme Heringer, de 22 anos, matou os pais a facadas no apartamento da família na Praia da Costa e depois tirou a própria vida.
O pastor e doutor em Ciências da Religião, Kenner Terra, e o professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e também doutor em Ciências da Religião, Edebrande Cavalieri ressaltaram que não é possível emitir uma opinião concreta sobre o caso, mas que conceitos históricos podem ajudar a entender a tragédia.
Leia mais: Médico assassinado em Vila Velha era considerado profissional atencioso
Símbolos históricos
Kenner Terra esclareceu que é complicado relacionar o crime à rituais satânicos, já que, historicamente, os símbolos usados não partiram disso.
"Historicamente foram interpretados como práticas de satanás, mas os símbolos não surgem apontando para isso. Provavelmente, nós não saberemos as crises pelas quais o jovem passava, o que ele sentia. E é possível que o símbolo tenha sido uma linguagem para externar as dores do interior", formulou o especialista.
Além disso, ele explicou que o símbolo 666 aparece em Apocalipse, mas se referia ao Império Romano, indicado pela citação do nome Nero César. Naquela época, os números apontavam para um nome, ou seja, era comum cada letra valer um número.
Na teologia, a prática é chamada de Gematria, o método de análise das palavras bíblicas somente em hebraico, atribuindo um valor numérico definido a cada letra.
"O apóstolo João envia as cartas para as sete igrejas, que eram do Império Romano, de Nero César, e era a encarnação do próprio dragão, do diabo. Com o tempo foi se tornando uma linguagem comum assimilar isso às práticas satanistas", detalhou.
Já a cruz virada, Kenner disse que ela surgiu na Idade Média, como uma espécie de crítica à própria Igreja.
"O número 666, junto com a cruz, tornou-se no imaginário como prática de indicar que é o diabo. Inicialmente não significavam nada disso. Dessa forma, as pessoas tratarem como um ritual é precipitado, por várias razões, porque inicialmente, na história, os símbolos não eram usados para rituais satânicos", finalizou.
Páginas da Bíblia rasgadas
Na interpretação do professor Edebrande Calavieri, nas páginas rasgadas, Guilherme pode ter tentado fazer uma analogia a passagem bíblica em que 'Jesus ressuscitou, o véu se rasgou e deu livre acesso a Deus'. Da mesma forma, o uso de tinta vermelha, simbolizando o sangue, o fim da vida e da história.
"Ele as rasga e pode significar que acabou o mundo e é o início do juízo final, isto é, não há mais salvação", concluiu.
"Nunca saberemos o que se passou na mente"
O pastor Kenner destacou que o uso dos elementos encontrados no apartamento nunca será esclarecido. No entanto, ele acredita que pode ter ocorrido um possível surto, descontrole e, desta forma, os símbolos foram usados como forma para externalizar a dor.
"Pode ser algo que trouxe das profundidades da mente, e que não daremos conta. Não sabemos o desespero que ele estava passando no interior. Não dá para tirar nenhuma conclusão agora. Qualquer julgamento só atrapalha as investigações", avaliou.
Para o professor aposentado da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e doutor em Ciências da Religião, Edebrande Cavalieri, toda a cena é assustadora e pode ser entendida em um primeiro momento como um ritual, mas é preciso cuidado.
"O cenário foi pensado com um certo tempo e premeditado. Ele construiu uma cena. E, a partir de um texto bíblico, ou seja, devemos tentar entender a partir de um contexto religioso, mas não é o suficiente, é preciso levar em conta também o desequilíbrio mental, um surto psicótico, mas mesmo assim é difícil compreender".
Entretanto, Edebrande esclareceu que é simplista enxergar como um ritual satânico. Para ele, o jovem cresceu em um ambiente cristão e entendia que as forças celestiais, quando lutaram contra o demônio expulsaram-no para a terra e, por isso, o mundo é mau.
"Festejai o céu. O diabo desceu até vós, pouco tempo lhe resta". "Quando ele usa essa frase, ele pode ter tentando dizer que o mundo é mau e, por isso, o diabo obrigou ele a fazer o que fez", disse Edebrande, relembrando também a frase encontrada escrita na bíblia "Ele me obrigou".
Com isso, o professor pensa que Guilherme podia acreditar que uma força superior e má está dominando a terra.
"Talvez ele pensou em salvar a família da maldade do mundo"
Partindo do contexto cristão, no qual ele foi criado, mas deixando claro que tanto a igreja quanto a família e os amigos não podem ser culpabilizados, Edebrande apontou que Guilherme pode ter tido uma leitura fundamentalista e literal da Bíblia Sagrada.
"Não vejo influência de pai, da mãe e nem da igreja. Até porque, pelo que soube, era uma família querida por todos. No entanto, ele pode ter feito uma leitura que o mundo estivesse dominado pelo mal, pela serpente, pelo demônio, e em um ato heroico quis salvar o pai, a mãe e a si mesmo", sublinhou Cavalieri.
"Não é honesto culpar família, igreja ou religião"
Para o pastor Kenner Terra, a história foi uma tragédia e sai do controle do julgamento moral da sociedade. Além disso, salientou que o momento pede que as pessoas respeitem o luto dos familiares e amigos, e que fazer interpretações precipitadas como julgar a família, igreja e religião só prejudicam.
"Não é honesto afirmar que é coisa do diabo, culpar a própria família, ou até mesmo a Igreja Missão Praia da Costa. Eles não podem ser penalizados e isso não é justo. Foi uma tragédia que não tem culpados, e qualquer acusação é a produção de bodes expiatórios que só atrapalham. O melhor é esperar a investigação e ser solidário", disse.
Por fim, Kenner disse ter conhecidos próximos da família e declarou que todos falam que Guilherme era um menino atencioso e que a família era muito amada na igreja.
"É necessário respeitar o luto. Os símbolos, por mais que tenha o senso comum, não necessariamente seria um ritual satânico. Essa afirmação não se sustenta com facilidade."
"Vivemos em uma sociedade doente e hipócrita"
Os dois especialistas defenderam que o momento pede empatia e respeito com os amigos e familiares.
"A loucura não nasce ali, mas tem outras origens, externas, nós estamos produzindo na sociedade uma cultura fundamentalista, que leva ao ódio, discriminação. Eu acho que a pior coisa que a sociedade pode fazer é culpabilizar a família, temos que tentar compreender. Mas no fundo, quem julga quer escapar da responsabilidade e não se sentir culpada. Não se perguntam o que estão fazendo com nossas crianças e nossos jovens? Educando para quê? Para quem? a sociedade é hipócrita, ela se isenta da responsabilidade, mas cria uma cultura de ódio" examinou Edebrande.